A ECONOMIA SOLIDÁRIA E A DIMENSÃO SOCIAL DA SAÚDE – Paul Singer

A economia solidária é um modo de organizar atividades de produção, distribuição e consumo, de poupança e empréstimo e outras relacionadas à satisfação de necessidades de toda ordem. A economia (enquanto ciência) trata destas atividades enquanto atividades sociais, sempre realizadas por grupos; elas podem ser realizadas individualmente também, como demonstram casos de náufragos e anacoretas, que são tão raros que funcionam como exceções que confirmam a regra. Os seres humanos vivem em grupos sempre, possivelmente como condição de sobrevivência, o que talvez explique porque as atividades econômicas não podem deixar de ser sociais.

 

O capitalismo é historicamente o primeiro modo de produção que individualiza o protagonismo econômico ao generalizar o mercado: “livre”, isto é, livre de qualquer interferência coletiva, seja do Estado seja de qualquer agrupamento de agentes: vendedores ou compradores. As leis não vedam que sociedades de pessoas ou de capitais atuem em mercados, mas devem fazê-lo enquanto indivíduos, ou seja, sem que haja qualquer relação de entendimento, aliança ou mesmo troca de informações entre elas. Estas leis são constantemente violadas pois são óbvias as vantagens que qualquer tipo de combinação proporciona aos participantes, quando atuam em ambientes em que a competição é ou deveria ser a regra.

 

O livre mercado é a instituição básica do capitalismo, se não na realidade pelo menos no plano ideológico. Ele é a justificativa básica da meritocracia, ou seja, de que as enormes diferenças econômicas entre pessoas, classes, nações etc. se devem ao mérito dos que têm mais ou ao demérito dos que têm menos. Para que a justificativa seja convincente é necessário que os mercados em que os produtos do trabalho social são comprados e vendidos sejam competitivos, ou seja, que os preços vigentes neles sejam determinados pela livre interação dos agentes, sem que qualquer um deles exerça influência decisiva nesta determinação. Se na realidade os mercados fossem competitivos neste sentido, seria sustentável a tese de que no capitalismo reina a igualdade de oportunidades para todos.    

 

O capitalismo tornou corrente (e oficial) a tese liberal de que a livre competição é a principal virtude de qualquer sistema econômico. A dominação desta idéia no mundo contemporâneo estendeu a defesa da competição para além da economia à família, à escola, aos relacionamentos sociais de modo geral, desde uma disputa por um táxi na rua até à escolha de membros de Academias de Letras e de quem merece ganhar algum dos vários prêmios Nobel. A vida social no capitalismo contemporâneo é impregnada pela competição, pela celebração festiva do ganhador e pelo desprezo pelos outros, os perdedores. 

 

A maior parte das competições são organizadas de modo que só possa haver um ganhador: o campeão, o best seller, o maior ou melhor de todos. Assim os méritos pela vitória podem mais facilmente ser atribuídos a um indivíduo, relegando à sombra todos os demais que contribuíram para ela. O que reforça o mito da meritocracia:  a humanidade é constituída pelos bons, fortes e dedicados e pelos demais, destituídos em diferentes graus destas qualidades. A sociedade só progride quando as posições de responsabilidade e poder são ocupadas pelos bons e quando estes são devidamente incentivados por recompensas adequadamente invejáveis a exercer suas raras faculdades.

 

A economia solidária surge como reação a este mundo produzido pelo capitalismo. Sua visão de mundo se baseia na idéia de que a principal virtude de qualquer sistema econômico é promover a cooperação entre as pessoas, famílias, comunidades, países etc..  De que a humanidade se compõe efetivamente de pessoas diferentes, mas que estas diferenças não resultam da concentração de qualidades em alguns e de defeitos em muitos outros. Antes pelo contrário, todos são dotados de qualidades e defeitos. Cada pessoa é uma combinação específica – provavelmente única – de características que, conforme as circunstâncias, podem ser consideradas boas ou más. O progresso da sociedade resulta da combinação destas múltiplas qualidades e defeitos de vários indivíduos, quando estes se associam e cooperam entre si.

 

O mérito dos avanços e conquistas da humanidade e de qualquer sociedade é de todos os que participam dos esforços coletivos que os possibilitam, mesmo quando os participantes se agrupam em diferentes empresas, escolas, times, igrejas e partidos políticos. Portanto, as recompensas – sobretudo os bens e serviços que satisfazem necessidades – devem ser repartidos entre todos por igual, em proporção a suas diferentes necessidades ou por algum critério de justiça consensual, negociado ou votado por maioria.

 

A economia solidária, coerente com esta visão, é visceralmente democrática e se opõe a qualquer tipo de opressão e discriminação. Em sua prática econômica, os meios de produção são propriedade dos trabalham com eles. Em grandes empreendimentos esta propriedade é coletiva, em micro-empreendimentos ela pode ser familiar ou individual. Em muitos empreendimentos de economia solidária produtores individuais ou familiares se associam para realizar algumas operações em conjunto, principalmente compras e vendas; nestes convivem a propriedade individual, familiar e coletiva.

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