O pragmatismo da utopia ou as utopias pragmáticas – Fernando Kleiman

Para falar sobre o pragmatismo da utopia é preciso primeiro falar sobre o pragmatismo como política, que não se resume, mas tem um de seus principais pilares, no pragmatismo da própria política, que pode assim deixar inclusive de ser política. Entre os elementos principais desse fenômeno do pragmatismo temos alguns eixos estruturantes que merecem uma breve menção. A mercantilização da militância é um primeiro processo que se apresenta. Pela necessidade de sobrevivência dentro do sistema que é feita pela obtenção de dinheiro, dificilmente as pessoas encontram tempo de vida disponível para se dedicar à militância gratuita. Todo o tempo de vida é potencialmente produtivo e com a eminência do desemprego, o melhor é transformar o máximo possível em valor, o máximo possível em trabalho produtivo (mesmo que não seja imediatamente remunerado) e a política passa a ser um desses “meios de sobrevivência”. Obviamente que as coisas não ocorrem e nem ocorreram com tamanha simplicidade, mas o aprofundamento da história econômica da militância demandaria mais paginas do que as que pretendo desenvolver aqui. Assim, fica apenas a pincelada do elemento militância paga no quadro geral.

Nesse mesmo processo temos o consumismo como status e sinal de inclusão social, que serve como reforço daquela descrição anterior. Para poder ser, torna-se cada vez mais preciso consumir, que demanda produzir, e a política mais uma vez é espaço de ganha pão. Esse movimento se reafirma quando além de expressão, o próprio ato de consumir torna-se terapêutico e assim para “relaxar” é preciso ter mais que algum. Isso porque caminhamos histórico-culturalmente para uma absolutização do imediatismo do prazer como possibilidade e desejo geral. Num processo valorização constante do presente, que coloca a historia como fato passado, irrelevante, o cotidiano nada mais é que natural.

Retomando os fatos: precisamos ganhar dinheiro para sobreviver e ter prazer; esse viver e prazer é condicionado pela possibilidade de consumo; e esse consumo depende de ganhar dinheiro – o pragmatismo na vida de cada um.

Acontece que essa vida tem seu elemento sustentador para além do próprio individuo, e isso é mais que o movimento de massa que reafirma esses mesmos valores. O dinheiro é resultado de sucesso e assim só se consegue obter o primeiro, almejado, pela comprovação do segundo. Competência. Como mais uma qualidade individual, que naturalmente deve ser buscada, o sucesso é objetivo e se manifesta pelas realizações dos indivíduos (sozinhos ou como parte de grupos). Quase numa tese Darwinista oculta de seleção natural, a competição é o palco onde estamos todos submetidos. Pensei em coloca-la como pano de fundo, mas já se apresenta de maneira tão clara que as cortinas já foram abertas para todo o público enxergar a olho nu.

A pergunta que se coloca é: qual é o papel que a utopia pode ter numa sociedade como esta? Por definição Utopia é não lugar. É aquilo que hoje é impossível. Em elaborações mais refinadas, de intelectuais dos séculos XVIII até o atual, agrega-se na descrição o elemento de impossibilidade como variante histórica e de transcendência do mundo “real”. Pois então que lugar ocupa algo que depende da história e que só serve pra questionar a ordem atual (ou seja, uma reflexão profundamente improdutiva!!!)? Essa talvez seja uma profunda questão para compreendermos o pragmatismo da utopia.

Nosso principal objeto de reflexão, porque eu o tenho mais próximo e nada mais (outros exemplos possivelmente caberiam), é a economia solidária, utopia militante. A economia solidária pretende-se como uma alternativa concreta e eficiente para pessoas que não conseguem (ou não querem) ser exploradas (ou subordinadas) poderem garantir seu ganha pão, sua sobrevivência. Está eminentemente vinculada a atividades produtivas, que geram valor, ao mesmo tempo que questiona a ordem em um sentido mais profundo: não preciso ser sozinho e não preciso depender de um privilegiado, posso construir uma alternativa coletiva. Essa alternativa é coletiva pra mim, ao mesmo tempo em que tem que ser alternativa dos demais. É coletiva e é democrática. Com o risco de ser apenas uma forma de auto-ajuda, assim como pode não sê-la.

Colocada apenas como alternativa individual, a economia solidária não passa de um projeto de tapar um buraco de ineficiência sistêmica momentânea (o conjunto de indivíduos que o sistema não conseguiu inserir). Se conseguir se generalizar como alternativa, pode ser capaz de inverter os fluxos de acumulação privada individual pela posse histórica de capital (dinheiro de família) e do império do sucesso individual como solução única para cada um.

Sem entrar nos meandros das diversas formas pelas quais a solidariedade permanece historicamente viva, e de como trabalhadores e trabalhadoras construíram cooperativas como reação ao emprego oferecido por patrões, ela ainda é uma possibilidade histórica. Se será concretizada ou não é a historia que poderá responder.

E aqui podemos tratar, então, do pragmatismo da utopia. A nova utopia, para ser reconhecida enquanto tal, e dar sentido à militância (no sentido de doação a um projeto maior que o meu individual mais imediato), precisa conter elementos de possibilidade presente. Aqui caímos em uma boa contradição: ao mesmo tempo que questiona, a utopia militante reafirma o próprio pragmatismo. Marx já dizia que “uma formação social nunca perece antes que estejam desenvolvidas todas as forças produtivas para as quais ela é suficientemente desenvolvida, e novas relações de produção mais adiantadas jamais tomarão o lugar, antes que suas condições materiais de existência tenham sido geradas no seio da mesma velha sociedade. É por isso que a humanidade só se propõe as tarefas que pode resolver, pois, se se considera mais atentamente, se chegará a conclusão de que a própria tarefa só aparece onde as condições materiais de sua solução já existem, ou, pelo menos, são captadas no processo de seu devir”. Utópico e ao mesmo tempo pragmático, o pensamento de Marx já se apresentava com essa contradição. Se pegarmos outros pensadores utópicos, liberais ou socialistas, essa mesma composição também parece se apresentar, nesse transito entre o real possível e sua efetivação como generalidade. Esse debate também mereceria um estudo mais profundo.

Ao inverso do que se apresentou ao inicio de nossa discussão, o pragmatismo pode não ser um empecilho à utopia. Apenas é preciso reconhecer que as utopias passadas, muitas delas, foram de fato frustradas e é preciso reinventar a utopia como forma de reinventar a própria militância que transcende sua necessidade imediata individual. Se isso se confirma, passamos apenas por uma crise dos tempos do qual novas utopias surgirão, e partir das quais poderá ser possível refundar a política.

 

 

Brasília, 19 de julho de 2005

 

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