Coerência histórica (reflexões sobre a Rússia)

19/05/2010

A história da Rússia é de uma riqueza enorme. Por terem sido um grande império carregam uma tradição muito forte na questão da nobreza. Diferente de um império como o espanhol ou o inglês, a impressão que da nobreza russa é de um permanente isolamento, tendo sido muito peculiar seu desenvolvimento. Os traços de nobreza manifestos nas artes copiam padrões europeus, buscam trazê-los para cá, mas sempre com um conteúdo muito forte da própria Rússia. A importação não se da por mera aquisição de obras; precisa ser incorporada nos seus valores aquilo que se traz de fora. Até nos mosaicos eles desenvolveram formas próprias de construção. E são diversos os lugares onde o orgulho russo parece não ter sido confrontada a altura por nenhuma outra nação.

O interessante da revolução russa ter ocorrido é o seu momento de decadência desse império. Crises na coroa e nas artes podem ser vistas no período, demonstrando fragilidade da força historicamente conquistada. Os valores estavam em crise dentro da nobreza, e já eram sentidos fora, nas condições de vida da população.

O regime soviético é erguido nessa matéria prima, de uma corte em crise mas herdeira de uma tradição de força e extensão de grandes proporções. Não é a toa que o próprio regime se coloque em condições de nova vanguarda, nesse caso não capitalista, voltada ao máximo de igualdade jamais visto no ocidente. E a Rússia novamente grande, seu signo do império colocado como projeto coletivo. Ao mesmo tempo a extrema centralização do poder também é velha conhecida dessa sociedade. Durante os regimes tzaristas foram muitos os que conduziram com mão de ferro a força estatal. Exemplo maior é Ivan o terrível que inclusive matou o próprio filho.

Delírio de grandeza e força centralizadora

Seria difícil imaginar um regime igualitário assentado nessas bases e que não caminhasse para o centralismo absoluto de poder. Justificado nos livros político-sociológicos como caminho para o comunismo, na realidade esses aspectos do regime soviético já eram daquela sociedade como uma herança de longa data. Não havia grande novidade num governo do povo, no qual esse fosse representado por um homem só. Dá pra pensar numa simples transferência.

O andar nas cidades de São Petersburgo e Moscou é interessante. Reflete essa mesma situação. Prédios monumentais históricos do regime tzarista são misturados com os exuberantes monumentos soviéticos. Como um drink de cor vermelha, o antigo se confunde com o novo nas exuberantes construções.

Mas hoje tudo isso é velho. Principalmente a nova Moscou está erguida sobre um campo onde os antigos espaços são desconstruídos e novos prédios dão lugar por vezes dentro dessas antigas construções. O Savoy e o Metropol são ocupados pela estética moderna das cadeias de hotéis internacionais; as grandes praças povoadas de quiosques que vendem comidas e bebidas aos transeuntes; até os palácios da praça dos trabalhadores agora são transformadas em mercados cheios de pequenos stands que vendem de cedas indianas aos eletrônicos chineses.

Disseram-me que nesses pavilhões antigamente haviam exposições de produtos dos trabalhadores. Eram locais de exposição de sua produção, com orgulho para os demais. Era aquilo que o trabalhador poderia consumir como resultado do trabalho de sua nação. Hoje ainda são bens de consumo para trabalhadores (os ricos não parecem freqüentar esses lugares) mas sem nenhum vínculo com seu trabalho ou orgulho nacional. Do contrario, diversos nem quiseram ser fotografados passando a impressão de pouco apreço por sua ocupação.

A nova Rússia parece ter o capitalismo como uma seiva que sai de seus poros e vai tomando lugar em toda parte. Da ostentação a enorme desigualdade social, tudo é vivo e aparente, claro aos olhos de quem por aqui passe. Como nos demais países (eternamente) em desenvolvimento, pobres mendigam por trocados, pequenos serviços são oferecidos ao lado dos chamativos e cheirosos ricos que parecem por vezes nem perceber sua existência.

O grau de ostentação parece maior que em outras partes do mundo. Os preços de bens de luxo, importados, são altíssimos e aparecem desfilando por muitos lugares centrais. Peles e sapatos compõe o cenário dos desfiles diários, afora os luxuosos carros que passam em muitas direções. Nos subúrbios, do contrário, bêbados (muitos) transitam cambaleantes ou permanecem sentados e deitados nos muitos bancos dos muitos parques e praças espalhados pela cidade.

Engraçado pensar que a Rússia volta a procurar uma nova identidade imperial, novamente grandiosa, mesmo depois dos muitos anos do regime soviético. Mesmo com todo sangue e lágrima, as raízes não parecem ter sido transformadas. E o capitalismo tem se apresentado como um ambiente bastante propício para o desenvolvimento desses anseios nos novos contornos que vão ganhando esse país.

1 Comment

  1. Separei alguns parágrafos para comentar.

    “Por terem sido um grande império carregam uma tradição muito forte na questão da nobreza.”

    A Rússia nunca foi um “grande império”, a Rússia era e ainda é um país com grandes dimensões territoriais, em grande parte na gelada Sibéria.
    A Rússia nunca teve um imperador, a Rússia tinha o “czar”, título que era dado a soberanos russos e sérvios.
    Grandes impérios foram os impérios espanhol, inglês otomano, o árabe, persa, macedônio, romano.

    “E são diversos os lugares onde o orgulho russo parece não ter sido confrontada a altura por nenhuma outra nação.”

    O “orgulho” alemão, inglês, francês, japonês, etc, fazem essa sua opinião não ser imprecisa.

    “O interessante da revolução russa ter ocorrido é o seu momento de decadência desse império.”

    Aqui é importante observar que a “revolução russa” aconteceu em Fevereiro de 1917 e foi feita por forças DEMOCRÁTICAS.
    Em Outubro de 1917 aconteceu UM GOLPE aplicado pela minoria bolchevique armada.

    “Não é a toa que o próprio regime se coloque em condições de nova vanguarda, nesse caso não capitalista, voltada ao máximo de igualdade jamais visto no ocidente.”

    Isso é uma coisa totalmente fora da realidade.
    Na Rússia pós Outubro de 1917 passou a vigorar a ditadura do proletariado onde apenas os comunistas tinham “igualdade” e todo o resto vivia na pobreza que sempre viveram.
    E assim continuou até a falência no final do século XX.

    “Seria difícil imaginar um regime igualitário assentado nessas bases e que não caminhasse para o centralismo absoluto de poder.”

    Este é o motivo primordial do texto.
    Inventar mais uma justificativa para o fracasso do socialismo na Rússia.
    Só que, os socialistas russos tiveram mais de 70 anos para mudar as condições sociais na Rússia, e tinham imenso poder para poder fazer isso.
    Mas, não conseguiram.

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