ROTEIRO DE DISCUSSÃO PARA A REFUNDAÇÃO DO PT – Paul Singer

Se fôssemos fundar um novo partido deveríamos nos debruçar sobre a elaboração de dois documentos: um programa e um estatuto. Acredito que o mesmo vale para a refundação. O programa deve enunciar os princípios do partido e a sua finalidade, ou seja, a que sociedade aspira e como se propõe a lutar por ela nas circunstâncias históricas em que se encontra o Brasil. O estatuto deve regular toda vida política e administrativa do partido e adquire importância maior por causa dos graves desvios de conduta a que o estatuto e seu possível desrespeito nos levaram. Proponho, a seguir, possíveis tópicos de discussão do futuro programa e do futuro estatuto do PT refundado.

 

O programa

1) Os princípios. Esta é uma discussão filosófica, tem a ver com valores e visão de mundo. Como somos socialistas, os valores primordiais serão inevitavelmente a liberdade, a igualdade e a justiça e sua aplicação à realidade mundial e nacional. O valor atribuído à preservação da natureza terá de ser considerado, assim como à diversidade cultural, com destaque à liberdade de opção sexual e à preservação das culturas tradicionais. Acho que o programa não deveria tomar posição sobre questões de consciência, como a do aborto ou das células-tronco, por razões óbvias.

 

Para mim, uma discussão de princípio é o limite entre a liberdade individual e o interesse coletivo, concretizado no relacionamento entre estado e mercado. Eu vejo na liberdade de iniciativa individual, familiar e coletiva um valor hoje central ao socialismo. E, pensando nas ONGs e no terceiro setor, o princípio também encontra aplicação contemporânea na questão do “público não-estatal”. A este respeito, os 25 anos de experiência do PT têm muito a nos ensinar.

 

Haverá certamente outros temas que as muitas cabeças que participarão deste esforço vão suscitar.

 

2) O socialismo. Este é o nome da sociedade que queremos. Trata-se de discussão que nunca cessa, pelo menos desde a Revolução Russa, e gira ao redor da aplicação de nossos princípios à realidade futura, pela qual lutamos. Estou convencido de que já estamos construindo o socialismo no Brasil (e nos outros países, em medida muito diversa), embora o processo esteja sujeito a avanços e recuos.

 

Esta convicção nasce da idéia de que o socialismo é obra coletiva dos inúmeros movimentos que resistem ao capitalismo e criam instituições alternativas na sociedade, na economia, na cultura e na política. O papel do estado nesta construção é muito variável. Em determinadas circunstâncias é crucial (quando por exemplo se reconquista a democracia), em outras é adjetivo. Positivo ou negativo, o papel do estado nunca é insignificante, mas tão pouco é decisivo. Ou seja, o estado não consegue construir o socialismo sem as iniciativas revolucionárias de classes, setores e agrupamentos sociais. O socialismo real ensinou-nos que o estado não pode substituir as iniciativas revolucionárias da sociedade, isto é, iniciativas estatais nunca são realmente revolucionárias.

 

É claro que estas são minhas idéias e tenho certeza que outras idéias surgirão no debate. Não estou querendo impô-las, só as apresento aqui porque elas exemplificam o tipo de discussão que acredito que será necessária. A importância deste tema está no fato de que o programa oferecerá um norte à ação do partido, para a definição de prioridades e de objetivos intermediários.

 

3. O agente histórico. Estamos pensando num programa de longo prazo, válido por toda vida do partido (ao menos na pretensão). Por isso, a visão do agente histórico implica numa análise da atual fase histórica do capitalismo e o tipo de sociedade de classes que ela suscita: transformação nas relações de produção e de trabalho, mudanças no papel do estado, privatização do sistema de seguridade, de saúde, de educação e a preservação do meio ambiente. E o papel do Brasil no capitalismo mundial globalizado com todas suas contradições.

 

Acho que a discussão do agente histórico tem que levar ao posicionamento programático do partido frente aos sindicatos de trabalhadores assalariados do campo e da cidade, dos trabalhadores por conta própria (camponeses, artesãos, pequenos comerciantes etc.), da intelectualidade e dos aparelhos ideológicos: mídia, indústria cultural e de entretenimento, rede escolar, sistema nacional de pesquisa científica e os movimentos da contra-cultura.

 

Não penso que seja útil reproduzir o velho debate sobre a noção marxista do papel revolucionário do proletariado. Prefiro um debate mais próximo da realidade atual, que foque no partido e o seu relacionamento com outros partidos (sobretudo de esquerda), com movimentos sociais, com entidades associativas das classes trabalhadoras e com os aparelhos ideológicos. Tenho por provável que o agente histórico que estamos procurando seja um amálgama como este, em que o partido deve estar inserido sem qualquer pretensão de liderança.  

 

4) Programas específicos

 

Sobre ciência e tecnologia, saúde pública e liberdade individual, educação pública e privada, seguridade social e renda cidadã, proteção à criança, à mulher, ao idoso, ao deficiente. Seriam programas gerais, orientações para formulação de programas concretos de alcance imediato.

 

O estatuto

1) democracia interna. Duas questões me parecem prioritárias. Uma é a preservação de espaço nas instâncias diretivas para o militante comum amador, que vive de trabalho externo ao partido. Neste contexto, acho que deveremos discutir deveres e direitos dos assalariados do partido, do presidente ao faxineiro; normas de assalariamento, sobretudo prazos máximos de permanência nesta situação.

 

Será preciso enfrentar o dilema: eficiência x representatividade. A profissionalização tem a favor de si que ela torna o aparelho do partido mais eficiente, embora exija muito dinheiro. O amadorismo é essencial para resguardar a representatividade das instâncias partidárias. O profissional acredita, muitas vezes, que preserva para sempre a identidade social de sua origem. Ignora que somos determinados tanto pelo passado como pelo futuro, que prevemos para nós. O petista profissionalizado pelo partido é influenciado pelo que aprendeu antes de se profissionalizar, mas também pelo que aspira e pelo que teme em relação ao seu futuro pessoal. Por isso, representantes de entidades associativas de trabalhadores, de movimentos sociais, econômicos, culturais etc., cujo futuro independe das posições que assumem dentro do partido, teriam que ser maioria nas instâncias diretivas do partido.

 

A outra é a questão financeira. Acho que a refundação deve fazer penitência pelos erros e desvios éticos cometidos em nome do PT e inserir no estatuto limites severos à captação de contribuições ao partido. Não deveríamos aceitar contribuições de pessoas jurídicas e nem contribuições de indivíduos altas demais, que possam implicar a compra de favores de qualquer espécie. O limite poderia ser um múltiplo da contribuição média anual do filiado.

 

O essencial seria que a refundação sinalizasse uma mudança de atitude, que até agora parece ter sido “quanto mais dinheiro melhor”. Deveríamos substituí-la por “apenas o dinheiro necessário para cobrir despesas essenciais”. O orçamento anual do partido, no plano nacional, estadual e municipal deveria estar aberto à discussão e resolução dos militantes. Depois de aprovado, a execução do orçamento e a prestação de contas deveriam ser acompanhadas por representantes da militância. Não ignoro que haverá necessidade dum Conselho Fiscal, que terá um papel mais formal, o de cuidar que a gestão financeira, administrativa e política do partido se paute por regras e resoluções aprovadas pelas instâncias partidárias. O orçamento participativo seria um elemento de democracia direta, acompanhando a execução financeira do ponto de vista substantivo. Por isso ele seria essencial ao funcionamento efetivo da democracia na vida interna do PT.  

 

A discussão do estatuto abordará com certeza muitas outras questões, que não sou capaz de antecipar. Mas, estas que aqui foram delineadas, me parecem essenciais à refundação.

 

 

 

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