“Socialismo de Mercado” e o “Planejamento Socialista” em questão – Monografia de Graduação em Economia – Fernando Kleiman

“De há muito sonho esta ilha, se é que não a sonhei sempre. Se é que a não sonhamos sempre, inclusive os mais agudos participantes. Objetais-me: ‘Como podemos amar as ilhas, se buscamos o centro mesmo da ação?’ Engajados, vosso engajamento é a vossa ilha, dissimulada e transportável. Por onde fordes, ela irá convosco(…)Supõe-se político, e é um visionário. Abomina o espírito de fantasia, sendo dos que mais o possuem. Nessa ilha tão irreal, ao cabo, como as da literatura, ele constrói a sua cidade de ouro, e nela reside por efeito da imaginação, administra-a, e até mesmo a tiraniza. Seu mito vale o da liberdade nas ilhas. E, contemptor do mundo burguês, que outra coisa faz senão aplicar a técnica do sonho, com que os sensíveis dentre os burgueses se acomodam à realidade, elidindo-a?”.

 

Carlos Drummond de Andrade[1]

 

 

 


 

 

 

 

SUMÁRIO

 

 

Tanto o ‘Socialismo de Mercado’, aqui definido através das idéias do economista Alec Nove, quanto o ‘Planejamento Socialista’, de Ernest Mandel, são propostas de discussão das bases de estabelecimento de uma sociedade futura, socialista. Será entre essas duas propostas que este Trabalho de Graduação irá discutir as identidades presentes, e as conseqüências delas para essa futura organização social. O resultado é que, para além da polêmica criada em torno das propostas dos mecanismos de planejamento, entre os quais se encontra o mercado, o fundamento do Socialismo estará nas relações que os homens e mulheres estabelecerão na apropriação de sua própria produção, que hoje no capitalismo necessariamente passa pela mercadoria força de trabalho.


 

 

 

 

 

ÍNDICE

 

 

 

 

 

 

 

 

 

I) Introdução   7

II) A Proposta de Alec Nove: o Socialismo de Mercado. 9

III) A proposta de Ernest Mandel: o Planejamento Socialista   14

IV) O relevante ao Socialismo   16

a) No espaço entre os dois autores: divergências?   16

b) Divergências  19

c) Convergências  22

V) Conclusões   24

VI) Bibliografia   32

VII) ANEXO   36

 


I) Introdução

 

O que eu me propus a fazer nesse trabalho de monografia foi resgatar a controvérsia em torno do socialismo de mercado e o socialismo centralmente planejado. Para tanto, utilizei um debate ocorrido em meados de 1980, entre Alec Nove e Ernest Mandel. Comecei pelo livro publicado do primeiro, a Economia do Socialismo Possível (1983). Nesse livro o autor descreve uma proposta do que poderia ser um Socialismo viável e passível de ser construído no tempo de vida de uma criança já concebida (o que imagino significar em torno de uns 70 anos). Comentando esse livro, Mandel irá publicar na New Left Review de setembro de 1986, um artigo intitulado “Em defesa do planejamento socialista” no qual faz a crítica de Nove de uma perspectiva marxista. Nove, em janeiro de 1987, publica sua resposta na mesma revista, discutindo “Mercado e Socialismo”. Para essa réplica, Mandel publica uma tréplica, na qual comenta “O mito do Socialismo de Mercado”, em maio de 1988.

 

Para desenvolver essa discussão com maior profundidade irei começar descrevendo o que é a proposta de Alec Nove em termos gerais. O livro de mais de 300 páginas apresenta uma série de discussões interessantes, escrevendo desde de críticas ao marxismo, crítica ao sistema soviético, crítica às doutrinas liberais, chegando a criticar até o tempo investido em sua vida com militância[2].

 

Descrita a teoria de Nove, compreendida inclusive pelos argumentos de defesa de seu artigo ulterior, irei entrar na descrição daquilo que propõe Mandel, reivindicando para si uma proposta marxista. Não pretendo me estender nesses dois momentos, pois são, na realidade, a base da discussão que pretendo fazer, não a discussão em si. Essa por sua vez pretende ir além das dicotomias ‘com ou sem mercado’, ‘com ou sem Estado’, mas sim para o que caminha nossa sociedade, em conjunto com onde espero que queiramos chegar, parafraseando Jacob Gorender: “o Socialismo está no horizonte!”[3].


II) A Proposta de Alec Nove: o Socialismo de Mercado.

 

O que Nove se propõe a fazer é definir um socialismo viável[4]. Sua idéia é limpar a área na discussão sobre socialismo e mostrar que é possível uma outra organização da sociedade, que possa não produzir desemprego e desigualdades extremas, caso essa seja a opção consciente dos cidadãos dessa sociedade.

 

E esses na realidade são dois dos pilares centrais assumidos por Nove que sustentam toda a sua proposta: primeiro, a existência de meios democráticos de decisão pela sociedade do que deseja para si e, em segundo, que essas opções sejam pautadas por possibilidades concretas desse coletivo. Dessa segunda consideração é que podemos derivar, seguindo a linha de raciocínio do autor, a existência do mercado, pomo da discórdia com Mandel.

 

Em diversos momentos das argumentações feitas por Nove estará presente a crítica contundente do planejamento central. Seja por motivos de acúmulo de poder, seja por motivos de ineficiência, quando não impossibilidade econômica, não se pode pensar em planos para gerir a complexidade da produção moderna. É por isso que a ‘democracia’ do mercado[5] é a melhor solução para questões de alocação dos recursos da sociedade. Ou, com mais clareza, é por isso que precisamos do mercado.

 

Ainda nessa proposta vale detalhar um pouco mais o todo. Para Nove, a primeira coisa que a sociedade teria que fazer seria decidir o que é produção de mercado (dividida em ramos produtivos competitivos) e o que seria gratuitamente fornecido pelo Estado. Isso seria feito por meio dos mecanismos democráticos, como o voto ou plebiscito. O autor indica dois parâmetros para a decisão: educação, saúde, previdência social, lazer são exemplos dos serviços que poderiam ser gratuitos; mas o tamanho dessa lista não deveria ser muito grande, pois, se espera que os cidadãos tenham consciência que o serviço gratuito também é pago (só que indiretamente) e que aumentar a lista é diminuir a renda disponível para a liberdade de escolha no mercado. A produção dos produtos desse, por sua vez, estaria dividida em 5 tipos de setores econômicos, diferenciados entre si pela relação de posse e comando das forças produtivas.

 

O primeiro tipo seria das empresas de posse e comando do Estado. Essas são chamadas Empresas Centralizadas. Concentradas em setores estratégicos, serão responsáveis por setores onde o custo de descentralização seja muito alto (tanto em termos econômicos, incluindo aí custos de externalidades, possibilidade de informação e ganhos de escala, como por questões sociais de distribuição e ineficiência). Exemplos para esse tipo de empresa seria o de produção de energia, crédito, a indústria siderúrgica ou petroquímica.

 

O segundo grupo de empresas seria o das Empresas Socializadas. São empresas de posse do Estado, mas, com sua gestão partilhada com os trabalhadores. É uma proposta de se criar uma empresa mista onde o dono, Estado, permite que seus trabalhadores exerçam a autogestão. Lembra um pouco a idéia de uma New Lanark[6] onde Owen é substituído pelo Estado. Seriam utilizadas essas organizações para ramos onde a centralização da produção é exigida (também por questões como alta escala de produção e investimento), mas, a gestão pode ser mais democrática entre os trabalhadores. Exemplos desse de tipo de empresa poderiam surgir nos setores de distribuição de energia, a distribuição de petróleo e indústria química. Vale ressaltar que esse seria o ramo para o qual deveriam ser convertidas muitas das empresas que passassem a atingir níveis ‘muito altos’ de lucros, além das taxas para remuneração do trabalho do ‘dono trabalhador’, a ser descrita mais à frente.

 

As cooperativas formam o terceiro tipo. Sua característica principal seria ter tanto gestão como a posse dos próprios trabalhadores. Sua administração deve ser formada por uma comissão de trabalhadores escolhidos por eleição ou plenárias. Essa condição seria princípio de legitimidade das cooperativas. Elas também serviriam, do mesmo modo que as empresas socializadas, para serem formadas a partir de empresas privadas individuais que aumentassem em muito os seus lucros.

 

O quarto grupo de empresas será o das empresas privadas não cooperativas e nem estatais. O autor defende que numa sociedade onde o socialismo seja a opção da maioria deva ser permitido que os que não queiram trabalhar em empresas do Estado, nas socializadas e nem em cooperativas possam fazê-lo à velha maneira assalariada. Isso vale tanto para aquele que será patrão, pois gosta de trabalhar enquanto tal (ressaltando que terá que trabalhar dado que ser patrão não é ter renda sem trabalho), quanto vale para o trabalhador assalariado, o qual muitas vezes não tem desejo e nem ‘capacidade’ para assumir responsabilidades. Sem ser considerado um mal social, a empresa privada deverá apenas ter limites quanto ao seu tamanho, poder e lucros. Caso um dos três esteja além daquilo que for socialmente decidido como permitido, então a empresa terá uma opção a fazer: deixar de existir ou tornar-se um dos tipos anteriormente descritos. Assim o autor garante que o capitalismo não será restabelecido pois está afastada a possibilidade de concentração de capital ou aumento demasiado das desigualdades.

 

A última possibilidade de empreendimento produtivo seria a iniciativa individual. Nesta estão incluídos do pipoqueiro ao advogado que não querem fazer parte de nenhuma organização coletiva. Essas iniciativas são tidas como importantes para dinamizar a sociedade em diversas produções de pequena escala e serviços e que a sua extinção seria um mal social. Neste caso, não poderia também, essa iniciativa, ultrapassar limites socialmente estabelecidos de concentração e crescimento.

 

Por fim, existe o Estado. Além de proprietário das empresas estatais e das socializadas, também existiria um corpo técnico e político, eleito, com funções de mediação entre os indivíduos e empreendimentos. Das regras sociais, legislações civis, e outras, não temos, nos textos, uma discussão feita. O aprofundamento maior existe nas questões da regulação de mercado. Monopolista do poder de emissão de moeda e do crédito (como proposto acima), o Estado terá uma importante arma econômica nas suas mãos: decidir quem cresce, quem não cresce e como cresce. Será a política de crédito o principal instrumento de ação do Estado na condução da execução dos limites e caminhos da produção social acima descrita. Além disso, também terá em suas mãos o bom e velho poder fiscal. Poderá não dar crédito e até impor taxas para ramos que se decida reduzir ou mesmo abolir. Dessa forma o Estado democrático controlará a economia, pois inclusive terá controle sobre todo grande investimento[7].

 

Assim sendo, um resumo geral das características, junto a complementos da proposta do Socialismo de Mercado poderia ser:

 

  1. Irá predominar da propriedade estatal, social e cooperativa;
  2. Será feita a planificação consciente dos investimentos;
  3. A administração de questões microeconômicas de grande relevância será feita pelo poder central;
  4. Ter-se-á a preferência pela pequena escala;
  5. Existirá concorrência (para se ter escolha);
  6. Os trabalhadores serão livres;
  7. O Estado determinará políticas de renda, rendas diferenciais, restrição de monopólios e estabelecimento do que estará fora do mercado, além das regras para aquilo que estará nele;
  8. Será necessária a manutenção de certa desigualdade social, bem como a orientação para a geração de trabalho como prioridade ao lucro;
  9. Existirá distinção entre governantes e governados;
  10. Existirá escassez relativa e seus conflitos;
  11. Será feita campanha pela opção de outras nações para seguirem esse modelo;
  12. Existirá comércio entre as nações.

 


III) A proposta de Ernest Mandel: o Planejamento Socialista

 

O objetivo maior de Mandel com sua proposta de Socialismo é libertar a humanidade de leis econômicas abstratas, tidas socialmente como naturais. O centro de sua proposta não é a proposta em si mas numa metodologia marxista de exposição[8], a análise da sociedade atual e a proposição a partir da crítica desta. Ou seja, é menos claro em Mandel do que em Nove, qual é o Socialismo proposto[9].

 

Mas, mesmo assim, existe uma proposta. O eixo central dela é que, organizado o chamado ‘planejamento socialista’ o melhor mecanismo de decisão da sociedade será efetivado: que as próprias pessoas decidam. Esse, para Mandel, é um ponto essencial. Não sendo comprovado cientificamente que o mercado permite medir da forma mais precisa as prioridades das pessoas[10], e sendo o mecanismo de funcionamento do mercado a produção para desconhecidos, em quantidades desconhecidas com resultados incertos, a criação de meios de participação direta dos concidadãos é a melhor forma de organizar a reprodução da vida social.

 

Através da organização de grandes Congressos de Trabalhadores (nacional e internacional) onde seriam discutidas as metas gerais da produção, discutidas e defendidas pelos trabalhadores eleitos, a produção seria organizada. Vale ressaltar que consta da proposta a tentativa de tornarem claros os objetivos dos mandatos dos candidatos, afim de que possam agir em função de uma plataforma. As opções seriam separadas em categorias a serem votadas: horas de trabalho, necessidades básicas a serem satisfeitas livremente, recursos disponíveis para crescimento, recursos para bens não essenciais (a serem comprados por mecanismos monetários), limites de renda, e a política de preços.

 

Abaixo dos Congressos, existiriam os Conselhos (por ramo) de Produção, através dos quais os planos seriam especificados e divididos entre as unidades de produção existentes. Existiriam também Conferências de Consumidores para análise dos planos dos bens de consumo. Ainda existiria um Referendo Pós-Produção para avalizar os planos a serem executados em termos concretos (após serem testados, os produtos seriam criticados e refeitos).

 

Por fim, os Conselhos das Fábricas poderiam discutir o concreto da execução dos planos acertados, buscando realizar a máxima economia de tempo possível.

 

Mandel não irá muito além dessa descrição. Na realidade o todo de seu trabalho centra-se tanto na crítica radical a proposta de Nove como uma extensa argumentação da superioridade da sua.

 

Dessa forma entendo que posso passar a discutir os pontos em comum e as divergências das propostas em questão, partindo assim para a problematização da discussão entre o “Socialismo de Mercado” e o “Planejamento Socialista”.

 


IV) O relevante ao Socialismo

 

a) No espaço entre os dois autores: divergências?

 

Uma questão importante que aparece como concordância entre os dois autores é que são separadas as discussões entre os princípios que definem o Socialismo e a sua conquista (ou transição). Por esse motivo também farei a separação, mas começarei pela questão menos tratada para chegar na definição. Começarei pelos elementos da transição.

 

Ambos os autores, assim como eu, concordam que para se falar de Socialismo precisamos primeiro falar em Capitalismo. Primeiro porque é dele que sairá essa nova organização ou sociedade. Segundo porque nele existem elementos que nos levam a querer sair para o novo. Então quais são esses elementos?

 

O primeiro, e talvez o mais importante, é a produção de desigualdades e desemprego, além de muito desperdício, no Capitalismo. Sendo o sistema capitalista uma forma onde toda a produção é voltada para o mercado e nesse mercado é mal distribuída, formas de mudar esse mercado são necessárias. Nenhum dos dois autores irá argumentar pelo decreto do fim do mercado (a lá União Soviética). Pelo contrário, tanto assumidamente em Nove, como implicitamente em Mandel, o mercado está presente. A questão do papel que este mercado terá é uma questão a ser tratada mais a frente.

 

Além da existência do mercado nesse período de transição, também existe como herança do Capitalismo, por mais que negado por Mandel, a suposição da existência de um Estado. Não fosse essa a suposição, não poderíamos nem mesmo pensar em relações internacionais, dado que para ter o ‘inter’ é necessário diversos ‘nacionais’, e esse nacional supõe identidade, supõe Estado. Nas mãos dos trabalhadores o Estado não deixa de ser Estado. Talvez muito pelo contrário, quanto mais seja operário e planificador, mais seja Estado.

 

E nesse ponto ocorre uma coisa muito interessante: de um lado Nove propõe que a sociedade decida o que ser fornecido gratuitamente; Mandel propõe a qualificação das necessidades em ‘essenciais’ e ‘não essenciais’; de forma diferente, ambos os autores encontram a necessidade de mediação da produção pelo Estado, e sua qualificação por prioridade social. Não se torna uma tarefa impossível pensar os critérios de Mandel como referência para as decisões do Estado de Nove. E por isso começa um diálogo entre os autores, mais que um debate.

 

Interessante também é o comentário contrário, da crítica radical de Nove ao planejamento. Assim como em Mandel o mercado está presente, o próprio mercado presente em Nove é também, como Mandel ressalta, uma forma de planejamento. A diferença da análise, e aí vale a atenção aos critérios de Mandel, é que existem tipos de planejamento, e entre esses o mercado e os planos devem ser vistos.

 

É possível ver no mercado um planejamento democrático, afinal temos oportunidades de escolha. Mas, como define Castoriades, o mercado é como um sistema de votos, só que nele existem pessoas que votam mais que outras. Mantidas as desigualdades nos ‘votos’, não existe como entender que o mercado seja uma forma democrática de planejamento, permanece a ditadura dos que concentram poder[11]. O mesmo vale para os planos. Se ficarem nas mãos de técnicos ou burocratas que encaminham a votação ao público, de nada vale essa votação. É fundamental que seja possível discutir inclusive o que se vota. No entanto, num limite não muito distante, parece se tornar inviável a tarefa de se votar o todo do que é consumido por todos os cidadãos de uma sociedade. Por mais que Mandel argumente que 80% dos bens comprados podem encontrar-se facilmente entre os de ‘primeira necessidade’ e seriam fornecidos pelo Estado, e que o consumo de uma pessoa não passa de 1.000 itens em toda a sua vida, milhões de indivíduos com o seu milhar de opções tornam a conta realmente difícil. Mas é aí que acredito estar deslocada a discussão.

 

A questão não é defender se o plano do Estado deve abranger 80% ou 60% e se devemos planejar todos ou parte dos insumos para produzir a nossa reprodução (isso quem deverá fazer, segundo os dois autores, será a própria sociedade, no momento futuro). Mandel no início de seu texto já havia indicado e parece esquecer-se de sua própria ressalva: hoje, querendo ou não, essas trilhões de combinações de insumo-produto são feitas dia-a-dia, pelo mercado e pelo planejamento das empresas. Uma alteração na propriedade das empresas pode ser um primeiro passo para que o trabalhador tenha acesso às decisões tomadas ao menos no espaço de trabalho do qual ele é parte. Seja em cooperativa, seja nas empresas socializadas, seja em empresas estatais, essa informação é uma informação relevante ao chão de fábrica, num sentido de apropriação social de sua própria reprodução.

 

Num segundo plano, a realização de discussões gerais sobre prioridades sociais (os bens livres) permite uma decisão consciente sobre os direitos de todos, e permite também mais um passo na apropriação dos planos. A questão se encontra no espaço entre os dois setores: aquilo que não é a prioridade de todos, e também não é o que é só da minha unidade.

 

Não me parece, a idéia de Mandel, muito distante da de Nove. Pensar a realização de espaços de consumidores para decidir como será a produção, por meio de voto, pode ser entendida como uma consulta onde o mercado serve de votação. A verificação ex-post via voto ou moeda só muda se em um dos dois critérios existir uma diferente distribuição do poder. Nenhum dos dois parece argumentar em sentido contrário a necessidade de que, seja qual for o mecanismo, deva existir democracia.

 

Mesmo assim ainda ficam algumas dúvidas, como por exemplo a existência ou não de lucros na proposta de Mandel. Pois se existe um setor de necessidades secundárias (socialmente estabelecido e aceito) que tem sua circulação feita via mecanismos monetários, nada impede que um empreendedor desse setor tenha melhores resultados que outros. Assim, nada garante que o lucro não retorne. Aí o mecanismo de controle proposto por Nove parece completar a proposta: mais uma vez, será o democrático e representativo Estado que dará os limites.

 

b) Divergências

 

Já vimos que algumas divergências supostas, na realidade podem não existir. Tanto em Mandel existe, ao menos na transição, um espaço de mercado (em um primeiro momento confinado aos bens secundários ainda escassos, podendo ser superado conforme se caminhe para a abundância da superfluidade), como em Nove existe planejamento, feito tanto pelo Estado, como pelas próprias unidades econômicas via mercado. Mas ainda assim, Mandel pontuará algumas questões que para ele são divergentes entre os dois, e portanto merecem aqui serem discutidas.

 

Um primeiro conjunto de questões, numa discussão ideológica e simbólica, refere-se ao nomeado ‘socialismo de Marx’. Esse pode ser definido como o aquele que propõe a organização da reprodução da vida social visando libertar a humanidade de leis abstratas e fora de seu controle que nada mais são que um sustentáculo de uma estrutura de dominação, o mercado. Mandel propõe que essa discussão seja feita em duas frentes: uma primeira referente a viabilidade dessa proposta (se ela é possível de existir); uma segunda frente na qual se, sendo possível, essa opção é desejável.

 

Para a primeira questão ambos os autores voltam a concordar quando assumem que a proposta pode até ser viável[12]. A diferença estará em assumir se essa proposta é, ou não, desejável. Nesse ponto ambos os autores marcam a sua posição: um sim radical para Mandel (pelo fim do mercado) e um não radical para Nove (contra o planejamento central).

 

Aparentemente, mais uma vez, lá no futuro os dois autores se separam. Mas a realidade da discussão, por incrível que pareça, encontra-se no presente, qual seja, a que não se pode fazer com que esse mercado simplesmente desapareça. Isso significa que a resposta que Nove dá a pergunta, em certo sentido, é a mesma de Mandel: o mercado não desaparece por decreto. Assim, a opção pela manutenção ou não da distribuição de um determinado conjunto de bens pelo mercado será uma discussão tão posterior à construção das instituições sociais que permitiriam a sociedade fazer essa opção, que vale mais a pena discutir quais seriam essas instituições (ou fóruns) que a própria opção em si. Resumidamente, mais que se perder nos argumentos da viabilidade e ‘desejabilidade’ de uma sociedade que reafirme ou extinga o mercado, vale discutir como essa poderia se tornar uma opção consciente dos cidadãos.

 

E é aí, nas cercanias das divergências, que encontramos mais uma convergência: ambos os autores partem da discussão do socialismo a partir de países já industrializados! É importante ressaltar que esse pressuposto pode jogar fora toda uma discussão necessária sobre a equalização das condições entre os países para que se possa, inclusive, discutir o que seria o socialismo em âmbito mundial.

 

Partimos então para o segundo bloco de divergências pontuadas por Mandel: divergência na natureza predominante das unidades produtivas, os limites da auto-gestão e o papel da competição.

 

O primeiro tema refere-se a manutenção de dinheiro e lucros na proposta de Nove que Mandel reafirma extinguir na sua. Como discutido anteriormente, se mesmo para a produção de bens de segunda necessidade for mantida a possibilidade de mercado, nem o dinheiro, ou lucros, podem desaparecer.

 

No segundo, referente aos limites da autogestão, e suas possibilidades, Mandel afirma manter em sua proposta uma abrangência geral para a autogestão, a ‘autogestão como princípio universal’[13]. Por outro lado, afirma que na proposta de Nove, a autogestão está restrita apenas a alguns setores, mantidas as diferenças salariais. No ponto levantado, mais uma vez, nenhuma divergência. Se em alguma empresa individual se opta pela autogestão, ela deixa de ser individual e vira cooperativa ou empresa socializada (compreendendo que a autogestão inclui a posse e voto por todos os trabalhadores). Ou seja, a opção pela autogestão também aparece como opção geral nos dois autores, dependendo apenas das opções feitas pelos próprios trabalhadores. Ainda assim restará a questão dos diferencias de salário. Se a lista de bens fornecidos pelo Estado realmente compreender 80% do consumo das pessoas, ficará em aberto como serão remuneradas as pessoas para o consumo dos bens de mercado. O diferencial defendido por Nove é um critério que, dentro das empresas democráticas, poderá ser usado caso seja opção da maioria. Tal opção também poderá ser feita nas empresas ou mesmo no próprio corpo decisório de Mandel. Mas nos setores de mercado assalariado tanto de Nove, como no setor de produção dos bens secundários de Mandel, esse diferencial será determinado pelo mercado e pelas regras criadas para o seu funcionamento.

 

Por fim, Mandel levanta o papel da competição em cada uma das propostas. Em sua proposta a competição aparece com uma ressalva: só poderá existir em setores onde não possa resultar em desemprego massivo ou crise geral de produção. Para Nove tal critério toma forma nas noções de competição maligna (as que geram crises sociais, faltas de ética) e benigna (onde os efeitos da competição são formas de selecionar os melhores, mas sem necessariamente destruir os piores). A discussão mais uma vez é dificultada pela colocação no mesmo plano de critérios de planos diferentes. Será que Nove discordaria do critério de Mandel? A resposta é negativa se se expande o conceito de maligno do exercício de um agente individual para a sociedade como um todo. Mas também pode ser constatado na pergunta inversa: será que Mandel discorda do critério de Nove? A não ser que se leia nas entrelinhas de Mandel uma interpretação desenvolvimentista do marxismo (o que não é a minha leitura) o autor jamais seria favorável a que uma criança matasse a outra para ir melhor na escola. Também não teria problema em selecionar um músico para sua orquestra porque toca melhor que um outro (a seleção de músicos não gera desemprego em massa…). Assim essa se torna mais uma diferença não tão diferente assim.

 

c) Convergências

 

Talvez pudéssemos agora esboçar uma proposta geral, comum aos dois autores, e a partir dela fazer a diferenciação de um bloco de opções que a sociedade poderia vir a fazer, apresentando aí algumas diferenças entre os dois.

 

Em primeiro lugar, com grande importância, esse socialismo teria Estado. Corpo de pessoas democraticamente eleitas que faria um controle geral da produção. Frente ao capitalismo, nada de novo.

 

A autogestão daria o tom do princípio democrático da gestão. Mesmo para as empresas do Estado, a própria democracia nas eleições dos corpos de dirigentes e representantes seria um meio de garantir o princípio. Nada de inviável, nada de muito novo.

 

O Estado poderia fornecer todos os bens que os cidadãos optassem por deixar disponíveis para todos. Isso é, seriam discutidos quais os bens primordiais que seriam um direito de todos terem acesso. Numa linha mais precisa, podemos ler isso como uma radicalização do Estado de Bem-Estar Social.

 

E para a formulação dessa opção, será necessária a formatação de um processo decisório do próprio Estado que permita uma democracia mais direta que o sistema representativo hoje existente. Desde a criação de novos fóruns, decorrentes inclusive da própria ‘re-organização’ da produção (Conselhos de Fábrica, Setoriais, Internacionais) até a criação de organizações do outro lado da produção (tendo como exemplo os fóruns de consumidores), essa nova sociedade terá que se reorganizar.

 

Formada essa estrutura, os Mandelistas iriam querer ampliar ao máximo a lista dos bens de produção do Estado, diminuindo a renda disponível; os Novistas iriam querer diminuí-la, buscando maior flexibilidade no consumo com sua renda disponível. Todos muito bem educados e alimentados. Isso seria, com certeza, um socialismo![14] Ou seja, na raiz da discussão existe um modelo geral cujas variações deverão ser votadas pelos próprios trabalhadores, futuros socialistas.

 


V) Conclusões

 

A partir da discussão desenvolvida, para além do resumo final das conclusões que podemos chegar no espaço existente entre os dois autores do capítulo anterior, existe ainda uma possibilidade de ampliação da análise se que torna interessante como conclusão desse trabalho. Onde está o Socialismo?

 

A resposta de estar no horizonte, no futuro, ou mesmo a colocação dessa sociedade como mera Utopia não seve para essa pergunta. Podemos conseguir mais. O Socialismo, no fundo, conforme analisado, e aí posso incluir uma série de outros autores que se voltam para a questão, mas que não me propus a incluir nesse debate[15], pode ser analisado segundo dois parâmetros: princípios e instituições.

 

A menor dificuldade da discussão está, e que no fundo é o ponto de convergência, em dois princípios norteadores de todo o debate: liberdade e democracia. Um terceiro princípio dessa discussão, a igualdade, é no fundo uma referência para o aprofundamento dos outros dois.

 

Caso se defina liberdade como ‘liberdade de escolha’, um capitalismo aprimorado já poderia, em si, ser entendido como o próprio Socialismo. Caso se entenda que o mercado, a partir de uma justa distribuição de renda, é uma forma de mera votação, mais ainda aquilo poderá ser concluído. Bastaria apenas reformar e controlar o próprio sistema, que nosso problema estaria resolvido. Esse comentário já estava presente na própria argumentação de Mandel: o controle das injustiças geradas pelo mercado já há muito tempo vêm sendo tentado. Não são poucas as experiências, das mais liberais, às mais intervencionistas, que temos na própria história como exemplo. Dado que voltam os problemas deve ser porque, por algum motivo, no capitalismo, em sua organização, em sua essência, isso não é possível.

 

Então o Socialismo não é apenas o capitalismo aprimorado. Tem que ir além. Através de quais conceitos?

 

Em primeiro lugar a liberdade deve ser mais que apenas a boa e velha liberdade de escolha do mercado. Deve ter meios de se optar pela própria vida que se quer levar, tempo para o qual se quer dedicar não apenas ao consumo e ao trabalho, mas ao lazer e outros prazeres que a vida pode proporcionar. É nesse momento que o princípio da igualdade pode ajudar. Liberdade como fazer o que se quer, o que se gosta; democracia como meios pelos quais todos exercem o comando, coletivamente; a igualdade não como todo mundo igual, mas todos tendo direito de ser cada um. Volto a citação de Antonio Cândido: “Mas o socialismo é algo mais vasto que suas manifestações históricas e continua a ser o caminho mais adequado às lutas sociais que tenham como finalidade estabelecer o máximo possível de igualdade econômica, social, educacional como requisito para a conquista da liberdade de todos e de cada um”. Essa referência pode nos levar dessa primeira discussão, a dos princípios, para a segunda, das instituições. Em que realidade concreta é possível essa definição geral se materializar?

 

Em primeiro lugar é necessário existir uma outra forma de organização do Estado. As relações que são a base de constituição da política nas sociedades modernas, na definição de Schumpeter[16], a hipocrisia, precisa ser superada. A política precisa se tornar mais que a mera concatenação de interesses particulares. Precisa constituir-se em meio efetivo de participação, de apropriação coletiva daquilo que é de posse do coletivo: o próprio Estado.

 

Um exemplo histórico de constituição de um espaço político diferente dos parlamentos atuais poderiam ser os Conselhos do Complexo Cooperativo de Mondragón[17]. Com mais de 50.000 trabalhadores organizados em cooperativas, numa cidade no Norte do País Basco, foram formadas cooperativas de diversos graus que planejam a produção geral da comunidade. Mas o conceito ali de comunidade são milhares de trabalhadores. Os níveis das decisões passam do chão de fábrica, através de seus representantes nos Conselhos, aos fóruns do Grupo de primeiro grau, por exemplo, por ramo. Em seguida, as decisões desse ramo são levadas a posições mais altas na organização maior, através de outros representantes. Não mais os favores, ou mesmo regalias, são os critérios que servem para gerir o coletivo. É a própria organização da produção que constitui o seu próprio Estado.

 

Além desse novo Estado, democrático de fato, precisamos de possibilidades de participação generalizadas para toda a sociedade. Nesse quesito ressalto dois aspectos principais: a sobrevivência em si e os determinantes daquela mesma participação. Pelo primeiro, a sobrevivência, refiro-me às condições mínimas necessárias para qualquer poder chegar a qualquer abstração de seu devir mais imediato. Do acesso a alimentos à saúde, isso significa que ninguém deverá, caso essa não seja sua opção, morrer de fome ou por falta de saúde. Além de comida e saúde, moradia, saneamento básico e vestimentas mínimas também são necessárias, inclusive como meio de prevenção a doenças. Se essas condições serão garantidas de maneira mais eficiente, mesmo sendo uma discussão secundária, via mercado ou Estado, discutirei mais à frente.

 

No segundo aspecto, dos determinantes da participação, quero dizer das condições de educação acessível para todos, afim de que possam ser conscientes de seu próprio trabalho, de seu próprio voto, de sua própria representação. Essa condição também pode ser preenchida via mercado ou Estado, a ser discutido.

 

Juntando as duas, apenas quando todos estiverem em condições plenas de participação, a democracia, a liberdade e a igualdade podem concretamente se manifestar. Essa garantia, mais uma vez, necessita de novas instituições.

 

Além dessas possibilidades e das instituições que as garantam, ou ao menos possibilitem, caso essa seja a decisão consciente dos cidadãos, necessitaríamos também de meios de informação velozes e disponíveis também para todos. Longe das informações perfeitas de mercado, para melhor avaliar o risco, o que se diz aqui é tornar disponível, para os cidadãos, as informações que eles mesmos geram para si. A relação de propriedade é, aí, determinante. Uma coisa é supor, num mercado competitivo, de empresas privadas, que cada competidor queira informar o outro de suas próprias posições. Numa sociedade orientada para sua satisfação coletiva, essa direção seria invertida, não sendo mais do interesse dos indivíduos que os outros não saibam do que faz. Pelo contrário, será somente através desse meio que o indivíduo, inclusive, poderá se beneficiar: a sociedade torna-se um todo de interesses mais amplos.

 

Correndo o risco de já termos voltado ao reino da Utopia (e não que isso fosse um problema), recoloco os pés no chão. Concordo com o argumento de Mandel de que, seja qual for a sociedade, ela terá de se planejar. O modo desse planejamento, a opção mais adequada, dependerá em muito das instituições de suporte que sejam criadas. Um número enorme de indivíduos regulados por um único plano central, seja ou não com Conselhos, parece ser, realmente, um caminho não muito interessante. Mas a idéia de diversos planos, feitos por diversos Conselhos, com consultas na ponta inversa, dos consumidores, pode ser um instrumento interessante de toda essa organização.

 

Um exemplo interessante dessa idéia é a cooperativa integral (consumidores e produtores). O ramo mais claro dela de que tenho exemplo concreto é o educacional. Em 1998 fui chamado para conhecer uma escola cooperativa. Sou contra a idéia de cooperativa educacional, pois, considero educação como um direito, a ser garantido pelo Estado, e não um serviço a ser comprado no mercado (com certeza educação estaria em minha lista dos bens a serem fornecidos pelo Estado, assim como consta tanto na de Nove, como na de Mandel). Mas mesmo assim fui conhecer a proposta.

 

A CEB, Cooperativa Educacional do Butantã, era uma escola formada por pais de alunos que, descontentes com as altas mensalidades cobradas pelas escolas privadas da região, descontentes também com a qualidade da educação fornecida pelo Estado, resolveram montar sua própria escola. Numa Cooperativa de Consumo, onde se juntavam para consumir o serviço de professores, coletivamente, através de seus filhos, os pais discutiam formas de gestão coletiva do empreendimento. Problemas como divisão de tarefas, diferença nas cobranças de mensalidade ou mesmo exceções, já apareciam no dia a dia. Foi então que surgiu uma nova questão, a de porque não poderiam cooperar os próprios professores para que também pudessem assumir a gestão? E foi dessa questão que se abriu a possibilidade de fazerem uma cooperativa integral.

 

Não sei qual foi o desfecho da história, mas o relevante aqui é que, caso fosse formada a cooperativa integral, o seu fórum interno de discussão, o seu Conselho, seria o espaço de democracia que o mercado hoje ocupa, mas com uma possibilidade de uma maior consciência por parte dos integrantes. Mais precisamente, com consumidores e produtores sentados à mesa, as decisões sobre mensalidades, turnos de trabalho, programas escolares, seriam todos, quantitativos e qualitativos, colocados às claras, sem impedimentos abstratos, para decisão. O que fazer seria efetivamente uma opção.

 

Assim também parece ocorrer em maior escala nos Conselhos de Mondragón. As taxas de juros do Banco Cooperativo podem ser estabelecidas em função de estratégias do coletivo, para crescer conscientemente em determinados sentidos. Aqui vale um destaque: mais um outro interessante mecanismo operado em Mondragón é o planejamento de trabalho; ninguém fica desempregado para além de determinado tempo estabelecido pelo coletivo. Se um ofício torna-se dispensável, recoloca-se diretamente o trabalhador em outras atividades nas quais ele possa ser necessário, e para as quais aceite ir (tendo como critério tanto o tipo de trabalho, como seu deslocamento).

 

É nesse debate que se insere Singer. Ressaltando sempre a necessidade de se ter um certo desperdício para se ter liberdade, em diversas ocasiões o professor levanta, com propriedade que, se não se tiver nenhum desperdício, ninguém poderia sair de onde está, sem que outro aceite trocar imediatamente. Isso porque, caso contrário, será um grande desequilíbrio colocar alguém onde não se tem espaço, e tirar alguém de um lugar onde não existe mais ninguém para entrar. Quanto mais rígido for o sistema de distribuição das funções entre as pessoas, quanto mais eficiente forem utilizadas as horas de trabalho, menos poderão escolher os trabalhadores. A radicalização dessa reflexão leva a um ponto de grande relevância: o critério da eficiência econômica capitalista, da melhor utilização dos recursos disponíveis, pode não ser a melhor eficiência social de um Socialismo. Com maior veemência, não será. A opção da distribuição das pessoas terá de ser feita de outra maneira que não o puro e simples contrato de trabalho. Precisamos de uma outra apropriação, inclusive, do trabalho.

 

É nesse momento que se torna relevante a questão da organização da própria produção. A proposta de Nove para os setores econômicos parece ser um interessante primeiro passo. O critério para o desenvolvimento dessa relação poderia ser o de Mandel: autogestão como princípio geral!

 

E através dessa discussão podemos generalizar que essa construção é mais relevante que a distribuição de produtos por mercado com moeda, bônus, ou outros meios do Estado em geral. Cito Fernando Haddad para a discussão: “Planejamento central e mercado foram tomados, desde a polêmica dos anos 1930, como conceitos econômicos, quando perante a ciência de Marx, os conceitos econômicos são imediatamente conceitos políticos. Numa passagem de importância equiparável à que inaugura O capital, tomando-lhe não por acaso a forma, lê-se: ‘na sociedade em que domina o modo capitalista de produção, condicionam-se reciprocamente a anarquia da divisão social do trabalho e o despotismo da divisão manufatureira do trabalho’ (O capital, livro I, cap.12, 4). Anarquia e despotismo são conceitos da teoria política desde os gregos. Dissociados destes conceitos, os conceitos de mercado e planejamento orientam pouco a ação daqueles que desejam a superação do sistema de trabalho assalariado. Pois uma coisa é negar o trabalho assalariado, outra é superá-lo. Teoricamente, os socialistas se dividiram em dois grupos: os que defendiam o socialismo de mercado e os que defendiam o socialismo centralmente planejado. Nestes dois modelos, o trabalho assalariado não parece ter lugar. Contudo, do ponto de vista de Marx, se a nova sociedade não tivesse superado efetivamente aquelas duas determinações da divisão do trabalho sob o capitalismo, não haveria possibilidade de se falar em socialismo.” (Haddad, p. 17)

 

Dessa forma, as diversas combinações possíveis de mercado, planos de Conselhos e burocracias em geral serão de fato opções dos futuros socialistas. Do meu ponto de vista, quanto mais conscientes puderem ser essas decisões, quanto mais aparentes possam ser tornadas as determinações que se encontram por de trás delas, mais longe do capitalismo estaremos. Quanto menos anarquia tiver na produção, menor será o desperdício inútil (causado pelo mero desconhecimento das vontades ex-ante), menor a ineficiência da sociedade como um todo, melhor para cada um. Mas o fundamental é que se caminhe para um espaço onde não existam mais opções conscientes pela submissão a ordens exógenas de produção, a submissões a patrões. Que se possa realmente viver a liberdade, como modo de vida.

 

Encerro aqui o trabalho com duas passagens de Marx que completam de forma radical toda a discussão. “As empresas capitalistas por ações tanto quanto as fábricas cooperativas devem ser consideradas formas de transição do modo de produção capitalista ao modo associado, só que num caso, a antítese é abolida negativamente e, no outro, positivamente”[18]. Trocando em miúdos, a superação do capitalismo se dá tanto pela concentração e centralização do capital, a formação dos grandes planos das grandes empresas e do próprio Estado, que quando controlado pelos trabalhadores poderão planejar segundo suas prioridades; quanto pela formação de cooperativas nas quais não temos a relação de assalariamento, de extração de mais-valia.

 

Por fim, cito o mesmo Marx, mas em texto anterior: “Em vez do lema conservador de ‘Um salário justo para uma jornada de trabalho justa!’, deverá inscrever na sua bandeira [o movimento operário] esta divisa: ‘Abolição do sistema de trabalho assalariado!’”[19]. Pois, realmente, se conseguirmos generalizar formas não assalariadas de trabalho, generalizar a libertação da força de trabalho enquanto mercadoria, sem dúvida o Socialismo, se já não atingido, estará muito próximo!


VI) Bibliografia

 

ALVES, Rubem  Conversas com quem gosta de ensinar, São Paulo, Cortez Editora, 1991

 

ANDRADE, Carlos Drummond de ‘Divagação sobre as ilhas’ in Poesia completa e prosa, Nova Aguilar, 1977

 

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ENGELS, Frederich ‘Del Socialismo Utópico al Socialismo Cientifico’ in Obras Escogidas, Editorial de Literatura Política Del Estado, Moscou, 1955

 

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HADDAD, Fernando Em defesa do Socialismo, São Paulo, Vozes, 1999

 

_______ O Sistema Soviético, São Paulo, Scritta, 1992

 

 

_______ (org.) Desorganizando o Consenso, São Paulo, Vozes, 1998

 

 

_______ ‘Trabalho e Classes Sociais’ in Tempo Social, Volume 9, Número 2, Departamento de Sociologia, FFLCH, USP, 1998

 

_______ Sindicalismo, Cooperativismo e Socialismo, São Paulo, 2001 (Mimeografado)

 

HOLZZMAN, Lorena da Silva Operários sem Patrões, Tese de Doutaramento- FFLCH-USP, 1990

 

LÊNIN, Vladimir Ilich Imperialismo: Fase Superior do Capitalismo, São Paulo, Global, 1979

 

LISBOA, Armando Os desafios da Economia Popular Solidária, Rio Grande do Sul, 2001 (mimeografado)

 

MORALES,  e GUTIERREZ Princípios do Cooperativismo, ACI, Espanha, 1988

 

 

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NOVE, Alec  A economia do socialismo ‘possível’, São Paulo, Ática, 1989

 

_______  ‘Markets and socialism’ in New Left Review, 161, Londres, 1987

 

 

PINHO, Diva Benvides Dicionário de Cooperativismo, São Paulo, Dotto Garcia Ltda. Editores, 1961

 

PETRAS, James ONGs: a serviço do imperialismo, São Paulo, 2001 (mimeografado)

 

SANTOS, Raul Cristóvão dos Texto provisório de HPE, São Paulo, 2001 (mimeografado)

 

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SCHUMPETER, Joseph Capitalismo, Socialismo e Democracia, Rio de Janeiro, Fundo de Cultura, 1961

 

SINGER, Paul  O Economista: engrenagem do planejamento?, São Paulo, 1989 (mimeografado)

 

_______  Globalização e Desemprego, S.Paulo, Ed. Contexto, 1998a

 

_______  Utopia Militante, São Paulo, Vozes, 1998b

 

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STUART MILL, John  Princípios de Economia, Os Economistas, São Paulo, Abril, 1983

 

WHYTE, William Foote e WHYTE, Kathleen King, Making Mondragón, ILR PRESS, 4th. Edition, 1996. 1st.edition, 1988.


 

VII) ANEXO

 

A PROPOSTA SOCIALISTA DE ALEC NOVE:

UM FICHAMENTO DO LIVRO A ECONOMIA DO SOCIALISMO POSSÍVEL DE ALEC NOVE, EM CITAÇÕES.

 

 

Conforme o autor define no Prefácio do livro “A Economia do Socialismo possível”, o que se pretende “é explorar o que poderia ser um tipo de socialismo viável, possível, alcançável no período de vida de uma criança já concebida” (p.7, grifoAN). Ou seja, a intenção de Nove, ao escrever seu livro, é propor um modelo de socialismo para efetivação no curto/médio prazo. Na introdução, voltando a definir sua intenção, destaca “uma das razões para escrever este livro foi precisamente, ajudar a que se chegue a uma definição de um socialismo que seja possível, que possa funcionar com razoável eficiência” (p.13). Para tanto faz, já de início, algumas ressalvas:

 

a)       “como não se pode supor que os problemas econômicos e sociais vão deixar de existir, uma sociedade socialista realisticamente concebida terá de enfrentá-los, ocorrerão contradições, haverá tensões, disputas. Se os seres humanos são livres para escolher, são também livres para escolher errado, e vão ocorrer conflitos com as escolhas feitas por outros”;

b)       irá existir por todo o livro, como o próprio autor ressalta no “adendo ao prefácio de janeiro de 1984”, um hiato na discussão sobre a transição do sistema atual para o socialismo proposto. Isso porque, conforme críticos levantaram, na parte do livro que trata da discussão da transição, mais se critica as políticas revolucionárias do que se propõe uma via alternativa. Ainda assim, o autor afirmará que “algumas vezes se diz que a propriedade privada dos meios de produção é uma condição necessária para a democracia política. Talvez. Mas certamente não é uma condição suficiente. A experiência de muitos (da maioria?) dos países em desenvolvimento sugere uma correlação inversa: o caminho do desenvolvimento capitalista exige a manutenção da ordem por um poderoso aparato repressivo, um regime militar ou um partido único(…) Mudanças estruturais rápidas, desestabilizadoras, atingem muitas pessoas, perturbam modos tradicionais de vida, freqüentemente envolvem sacrifícios”.(p.22)

c)       afirma ainda que “um socialismo democrático só pode ser concebido sob a condição de que a maioria da população o deseje” (p.11)

d)       opta por discutir a questão para um país industrializado

e)       e considera “que a ambição humana é uma força que não pode ser ignorada; que, na verdade, deve ser atrelada à busca de eficiência. Mas ela não precisa ser estimulada com propaganda e comercialização militante”. (p.23)

 

Passa então, ainda na Introdução, a fazer uma breve descrição daquilo que permanece como característico do sistema capitalista a ser transformado:

 

a)       “a polarização da sociedade em um pequeno grupo de supercapitalistas-monopolistas e proletários empobrecidos, prevista por Marx, não chegou a acontecer; na verdade há uma profusão de pequenos negócios, enquanto grandes pacotes de ações dos grandes negócios são de propriedade de fundos de pensão e de companhias de seguros, representando agregados de poupanças predominantemente pequenas” (p.14)

b)       “Mas, mesmo considerando-se isto [citação anterior], permanece o fato de que as empresas gigantescas e os conglomerados dominam séries inteiras de indústrias vitais e muitos pequenos negócios dependem de subcontratações dos gigantes” (p.14)

c)       sobre o papel das empresas afirma que “o poder monopolista também tem seus aspectos políticos: o controle governamental sobre os monopólios e o poder das grandes empresas sobre os governos”(p.15); enquanto sobre as possibilidades dos trabalhadores afirma que “todos sabemos que um grupo bem pequeno de trabalhadores numa fábrica de componentes pode causar danos enormes para a indústria. A especialização por fábrica e por ofício aumentou em muito esse poder”

d)       “os grupos que exigem o atendimento de suas reivindicações, de seus ‘justos direitos’, podem não ter nenhuma cor política, e o colapso da economia é normalmente o que se acredita ser o próprio interesse, justificado pelo fato que a ideologia básica da sociedade é a busca do própria interesse” (p.16)

e)       “Com freqüência, o comando da indústria e a direção das empresas cabem àqueles que têm nascimento, conexões e portfólios corretos, que podem, ou não, ser mais eficientes em seus trabalhos”(p.16)

f)         “Imagina-se o ‘socialismo’ como alternativa para uma sociedade baseada ainda, em grande parte, na propriedade e no lucro privados”.(p.23)

 

Será, então, na Parte 5 do livro, chamada “Socialismo possível?”, o lugar onde Nove irá precisar sua proposta.

 

Começará fazendo o que chama de ‘algumas suposições sociopolíticas’:

“por possível ou factível quero dizer um estado de coisas que possa existir na maior parte do mundo desenvolvido, no decorrer da vida de uma criança já concebida, sem termos de fazer ou aceitar suposições implausíveis ou artificiais acerca da sociedade, dos seres humanos e da economia” (p.303). Isso significa:

 

a)       Excluir a abundância

b)       Existir o Estado, com divisão entre governantes e governados, seguindo uma democracia pluripartidária;

c)       existir um parlamento também eleito, formado por uma mistura de políticos ‘profissionais’ e membros de comitês, com concorrência por posições políticas[20]

 

Mas para além da super-estrutura na qual tal socialismo será inserido teremos que conceber  ‘empresas, mercado e concorrência’. Isso porque existe a necessidade, segundo o autor, de variedade e de oportunidades para as iniciativas individuais e de grupo (preferências do consumidor, determinando o que produzir pelo mercado, e do produtor, determinando como produzir pelos trabalhadores nas empresas).

 

Concordando com André Gorz, Nove diz que “se a larga escala oferecer uma economia muito pequena de custos, deve-se estar predisposto a adotar a pequena escala”. A tecnologia, assim, também seria determinada em função do emprego e do tipo de trabalho a ser executado (agradável, qualificado, não repetitivo, etc.). Dessa forma, conclui que haveria a “coexistência de uma grande variedade de escalas, de técnicas e, conseqüentemente, de organizações ou mesmo de relações de produção”. (p.307) Descreve então quais seriam as espécies de empresas, segundo essas variações: empresas estatais, empresas de propriedade do Estado, cooperativas, empresas privadas em pequena escala e indivíduos.

 

Talvez como o sustentáculo principal da proposta, Nove então fará a especificação, em primeiro lugar, do que seriam cada um desses tipos de empresa. Depois descreverá a relação que possuiriam entre si. E por fim, discutirá as suas limitações.

 

A descrição dos grupos de empresas

 

O primeiro grupo, das Empresas estatais, centralizadas, seriam centralmente controladas e administradas, tendo como exemplo os setores de crédito, eletricidade, transporte ferroviário ou público em geral, siderurgia e petroquímica. Seriam, assim, possuídas e geridas em razão de sua importância estratégica no planejamento da sociedade, bem como das vantagens que ofereceriam à sociedade a sua posição monopolista (tecnologia e escala).

 

O segundo grupo, das empresas de propriedade do Estado, mas com administração autônoma dos trabalhadores, será chamado de empresas socializadas. Essas serão grandes empresas também, só que em setores onde é possível a opção pela autogestão. Como exemplo ficam a rede de eletricidade, a distribuição petrolífera ou a indústria química.

 

O terceiro grupo de empresas serão as cooperativas, que, assim como as empresas socializadas, terão administradores designados por uma comissão eleita, ou por plenárias. “As cooperativas, para serem legitimas, deveriam ser administradas pelos seus membros” (p.333).

 

O quarto grupo, das empresas privadas, não poderá ser visto como mal social. “Se qualquer atividade (que não seja realmente um ‘mal social’ em si) puder ser lucrativa e realizada de modo frutífero por qualquer indivíduo, isso define a questão de sua legitimidade” (p.316). Isso valerá também para as iniciativas individuais, o quinto e último grupo. Não deverá haver problemas para a existência do lucro, contanto que o ‘empresário’ trabalhe. Haveria apenas limites referentes ao número de empregados, valor dos ativos ou setor. “Uma possível regra poderia ser que acima desse limite tem que ser feita uma escolha; ou a empresa se converte numa cooperativa ou se transforma numa empresa socializada, com pagamento adequado para o empresário original” (p. 317).

 

Relação entre os tipos de empresas

 

“Talvez a melhor maneira de definir uma linha divisória entre as empresas centralizadas pelo Estado e as empresas autônomas seja com relação ao escopo das decisões sobre a produção, enquanto unidade distinta da direção geral da empresa” (p.310). Além dessa distinção, a questão do trânsito da informação será também um outro divisor de águas. “Já vimos que tentar incluir toda economia num só plano central, abrangente e desagregado, é impossível, ineficiente e, ao meu ver, indesejável, por razões sociais e políticas, assim como é impossível internalizar todas as externalidades” (…) e “a análise das alternativas organizacionais pode nos mostrar quais são os setores, as indústrias, o tipo de decisão onde o custo de centralização é maior do que os benefícios (e ‘custo’, aqui, inclui a alienação e a frustração causadas pelo afastamento das instâncias de controle), ou onde o custo da não-descentralização é excessivo, tudo isso com uma clara preferência pela pequena escala” (…) “Se houver concorrência e se as decisões de produção ‘pertencerem’ ao nível em que se dá a produção, então poderiam haver empresas socializadas, em que os representantes da força de trabalho tivessem um papel importante na administração” (p. 311, grifo A.N.).

 

“As principais diferenças entre empresas socializadas e cooperativas num ambiente competitivo decorrerão das relações de propriedade” (p.316). A primeira, prorpiedade do Estado, terá uma relação a ser definida entre as responsabilidades do possuidor (o Estado) e seus trabalhadores, o que não ocorre nas cooperativas, onde os trabalhadores respondem por tudo.

 

“As cooperativas e empresas privadas deverão, em princípio, arcar com os custos de seus próprios erros. Do outro lado da escala, o setor administrado centralmente pelo Estado seria por certo de responsabilidade do governo, que determinaria a política de preços a ser seguida” (…) “o problema mais difícil será o das empresas socializadas, em que a administração é responsável perante a força de trabalho” (p.321).

 

Para a distinção entre todos os tipos de empresa Nove fará uso de um conceito que distingue formas benignas e malignas de concorrência. Através dele, conclui que a concorrência entre músicos de uma orquestra melhora o nível da orquestra, a concorrência entre pesquisadores por verbas melhora a qualidade da pesquisa, mas crianças japonesas que sabotam as outras para irem melhor ou jogadores de futebol que agridem gravemente e propositalmente seus adversários, isso seria uma má concorrência. Para tanto espera que os motivos de tal concorrência não sejam monetários e nem pautados apenas pelo interesse próprio. “Concorrência implica não apenas vencedores, mas, também, perdedores. Para ela ser possível, tem de haver capacidade ociosa” (p.321)

 

Na manifestação de tal concorrência no mercado apontará alguns critérios de comportamento (dos gastos pelas empresas) que necessitariam ser regulamentados de alguma maneira: criar certa dificuldade de venda dos produtos para manter a concorrência, e fazer com que a propaganda para aumentar essa venda seja voltada a informação, evitando que falsas inovações e gastos excessivos com embalagens ocorram.

 

“Note-se que não há lugar para nenhum tipo de capitalista; nosso pequeno empresário privado trabalha, mesmo empregando alguns outros. Não há, portanto, renda não-ganha, decorrente da simples propriedade do capital ou da terra” (p.318). A tendência para as fusões, segundo o autor, deve ser evitada.

 

Os limites das empresas

 

Mesmo com todos os tipos de empreendimentos haveria ainda o centro, o governo pressuposto. Este seria responsável por grandes investimentos, o monitoramento de investimentos descentralizados, controle das empresas centralizadas e o estabelecimento de regras básicas para os setores economicamente autônomos e livres. Além disso, também regularia o comércio externo, e como resultado de todas as ações, o longo prazo da economia. “Finalmente, o voto democrático poderá decidir os limites entre os setores comercial ou de mercado e aqueles onde os bens e serviços são fornecidos gratuitamente. Educação, saúde, previdência social (incluisve seguro-desemprego para os que se tornaram excedentes pela mudança tecnológica), lazer de vários tipos (parques, museus), a lista pode ser longa. Suspeito que os eleitores de uma futura sociedade socialista  não vão querer fazê-la longa demais, já que eles (diferentemente de algumas pessoas hoje em dia) vão compreender que os bens e serviços gratuitos têm que ser pagos e que, quanto maior for a lista, menor será o nível da renda pessoal disponível” (p.319)

 

“Deve-se, portanto [para garantir também que não se tornem monopolizados os mercados ou que empresas privadas aumentem muito seus lucros], pensar em procedimentos para o estabelecimento de novas cooperativas e empresas socializadas. Os créditos bancários serão importantes no financiamento de tais ‘começos’ e aqui o plano estatal pode exercer uma importante influência: problemas regionais, oferta de trabalho, previsão de necessidades futuras, considerações ambientais podem e devem influenciar as decisões” (p.335).

 

Para isso torna-se necessário discutir o processo de investimento. “Os investimentos seriam divididos em duas partes: os de significado estrutural, normalmente envolvendo a criação de novas unidades produtivas ou a expansão muito substancial das já existentes, e os que representam um ajustamento às mudanças da demanda (ou novas técnicas)” (p.339). Este seria responsabilidade das administrações das empresas, enquanto os estruturais seriam feitos pela planificação central. “Uma vez que estamos discutindo um país industrializado, desenvolvido, não é preciso supor que altas taxas de crescimento tivessem grande prioridade” (p.340, grifo F.K.).

 

“Seria necessário ter uma legislação socialista antitruste: nos setores em que a concorrência é desejada e desejável, ter-se-ia de evitar a criação de redes informais ou cartéis, acordos de não expansão ou de não concorrência. Uma maneira de combater essa tendência é encorajar (com créditos favoráveis, etc.) a criação de novas unidades produtivas no setor, outra função importante da planificação central, num ‘mercado socialista’ (…). Na verdade será uma tarefa difícil para o centro dirigir o resto da economia por controle remoto, sem ordens detalhadas, evitando o desemprego em massa e a inflação – difícil, mas certamente não impossível. Ele terá a sua disposição armas como a política de crédito, a criação (ou estímulo à criação) de unidades produtivas, o controle sobre os preços nos setores centralmente administrados, a elaboração e a efetivação de regras básicas sobre o uso dos lucros, a distribuição de renda e tributação” (p. 341).

 

“O controle total é impossível; a tentativa de uma planificação universal feita por um centro onisciente produz resultados que ninguém deseja (nem mesmo o centro). O descontrole total também não funciona, e certamente não é uma solução socialista” (p.342). Um bom critério para determinar esse limite será, nos casos em que “o custo de internalização (isto é, a referência a uma autoridade mais alta) parece ser maior do que o benefício, a liberdade de uma decisão local pode e deve ser limitada. ‘Custo’ aqui inclui também frustrações e demoras” (p.343).

 

Por fim, “haverá comércio externo. (…) Os preços internos e externos seriam consistentes entre si. Iriam resultar, em parte, de negócios específicos, e, em parte, de acordos internacionais de preços para mercadorias específicas” (p. 343). “Infelizmente, não é verdade que só o capitalismo é fonte de conflito internacional. Deve-se fazer o melhor possível para espalhar a ideologia do internacionalismo e aumentar os contatos econômicos e sociais entre os povos, aumentar a interdependência” (p.344).

 

Complementos do sistema

 

Divisão entre o que vai para o mercado e o que não vai

 

Seguindo sua exposição, Nove então aborda a questão dos preços, lucros e teoria do valor. Começa definindo que “a lógica do sistema proposto naturalmente exige preços que equilibrem oferta e demanda, que reflitam os custos e os valores de uso. Isso não exclui os subsídios, sempre que forem considerados socialmente desejáveis, ou onde as economias externas forem significativas (transporte público, vitaminas para quem amamenta, talvez habitação, etc.); é claro que alguns itens não terão ‘preço’: educação, hospitais, parques, etc.. (pág. 322, grifo F.K.). Ou seja, existiria o mercado e o não mercado. O mercado, seguindo a concorrência, teria nela o controle do abuso de poder por parte dos produtores. Em relação ao lucro, comenta que “o que ofende é a apropriação do lucro pelos capitalistas, não o lucro em si.(…) Com um dado nível de salários e preços, desde que os preços reflitam corretamente as condições de oferta e demanda, a lucratividade é um critério apropriado para a eficiência (outras coisas sendo iguais e abstraindo-se considerações de qualidade). (p. 323) Sendo que “o valor é a interação entre custo – cujo principal elemento é o esforço humano – e sua avaliação pelo usuário, o consumidor, isto é, o valor de uso do que é produzido. A diferença entre custo e preço final de venda é o lucro, ou o excedente.”(p.324) “Não haveria exploração, a não ser que se considere assim um administrador-proprietário trabalhador que esteja obtendo uma renda adicional com seus empregados” (p.325).

 

Em relação ao não mercado, definido politicamente pelos membros do Estado, “espera-se, de maneira otimista, que os desejos dos cidadãos, democraticamente expressos, não sejam comer o bolo todo e continuar com ele, ou distribuir mais bolo do que realmente existe. (…) Salvaguardas institucionais e educação política e econômica podem – esperamos! – reduzir o risco de tais ocorrências desagradáveis” (p.324). Propõe o autor que “o voto democrático pode decidir os limites entre os setores comercial ou de mercado e aqueles onde os bens e serviços são fornecidos gratuitamente. Educação, saúde, previdência social (inclusive seguro-desemprego para os que se tornaram excedentes pela mudança tecnológica), lazer de vários tipos (parques, museus), a lista pode ser longa” (p.319).

 

Em relação a isso irá apontar novamente que “pode-se muito bem saber que mesmo um bom esquema organizacional, se tiver de tratar de milhares de pessoas, vai ter resultados desapontadores” (p. 339).

 

Como critério apontará que “a subordinação vertical deve, sempre que possível, ser substituída por vínculos horizontais, isto é, por contratos negociados, acordos entre fornecedores e fregueses. (…) É claro que alguém (alguma instituição) deve dizer aos produtores o que os consumidores desejam. Se esse ‘alguém’ não for o mecanismo impessoal de mercado, só pode ser um superior hierárquico” (p.347)

 

Entre os dois setores, “no que se refere ao uso eficiente de recursos, é evidente que sua escassez relativa seria um fator relevante, mais ainda quando os recursos não são renováveis – como os solos petrolíferos. O tempo também teria de ser levado explicitamente em consideração” (p.327). Para a regulação do uso desses recursos, o Estado poderia emitir autorizações ou impor taxas.

 

Hierarquia como conseqüência da Especialização

 

“Não há dúvida que as especializações continuarão a existir. (…) Entretanto, todos os que desejem devem ter oportunidade de mudar de emprego, de especialização. O aborrecimento e a rotina não são ‘bens’ sociais” (p.328). “O problema da divisão vertical do trabalho é mais difícil. Primeiro é preciso identificar as necessidades funcionais da subordinação, na indústria e em outras partes (…) além do conhecimento especializado: é um desejo e uma capacidade de assumir responsabilidades. (…) Assim, o mais provável é que ocorra uma mistura de eleição e indicação, com a necessidade objetiva de hierarquia sendo devidamente refletida na existência da hierarquia. (…) A assembléia eleita terá uma função chave aqui, bem como a imprensa livre” (p.329).

 

“Os diferenciais de renda (uma espécie de mercado de trabalho) são a única alternativa conhecida de direcionar o trabalho” (p.329). E a idéia de formação de comunas não pode ser vista como solução pois só as formam pessoas que querem (como o caso dos kibbutzim). O resultado desse raciocínio é que “assim, devemos pensar no grau de desigualdade que se precisa para se obter o esforço necessário por parte de seres humanos livres. As escalas reais de trabalho serão, assim, influenciadas pela oferta e demanda de tipos específicos de trabalho” isso porque “deve-se levar em conta que a maior parte dos trabalhadores acredita em diferenciais de renda e também que se acredita, quase universalmente, que em qualquer campo um funcionário superior deve ganhar mais do que seus subordinados” (p.330).

 

Nessa questão o autor sugere ainda que “um esquema de bônus limitados, vinculado aos lucros, seria desejável no setor socializado (competitivo) para dar um interesse material aos que participam na administração, a despeito da probabilidade de atritos que isso causaria” (p.331). Além disso, para evitar problemas apontados ao analisar a experiência iugoslava (não expansão da força de trabalho em época de desemprego, e pouco interesse no longo prazo) seria necessário: definir claramente o salário, criar um bônus modesto para os lucros, e bônus por tempo de serviço, vinculado aos lucros de longo prazo.

 

“Os pontos essenciais me parecem ser vincular os incentivos materiais do trabalhador à saúde, a longo prazo, da empresa (isto é, torná-lo interessado também no investimento, levá-lo a apostar no futuro), o que está vinculado integralmente à existência de um salário, isto é, de uma taxa para o trabalho, sem a qual o próprio conceito de ‘lucro’ deixa de ter significado estatístico: se toda renda líquida (após o pagamento de insumos, impostos, etc.) for dividida entre a força de trabalho, não existe ‘lucro’ enquanto tal; mas deve haver” (p.337).

 

“Devemos esperar que qualquer autogestão significativa altere a atitude do trabalhador perante o trabalho, freqüentemente passiva ou negativa” (p. 339).

 

 

Sindicalização

 

“O direito a sindicatos livres é uma parte indispensável das precauções contra o abuso de poder e contra privilégios ilegítimos; mas no complexo mundo moderno, o uso violento do poder sindical pode causar prejuízos sérios aos concidadãos” (p.332)

 

Terra

 

Pelo uso da terra, propriedade do Estado, seria cobrado uma renda ou aluguel, de acordo com a fertilidade e localização dela para compensar diferenças.

 

O papel econômico da política democrática

 

“Como existem centenas de milhares de tipos diferentes de bens e serviços em permutações e combinações infinitas, um processo político de votação é impraticável, como é impensável uma cédula que incorpore a escolha microeconômica do consumidor. (…) Com uma distribuição aceitável da renda e sem a ocorrência de grandes rendas sem trabalho, não há melhor método para se chegar à escolha do consumidor do que permitir que ele mesmo escolha” (…) “Preços mais altos e outros estímulos materiais podem levar a ofertas adicionais de bens reprodutíveis” (p.345).

 

“Os votos democráticos, inclusive os referendos, podem ser usados para determinar (ou escolher entre) prioridades gerais, para dirigir mais recursos de investimento para, digamos, a distribuição a varejo, o transporte público, os postos de saúde, as escolas maternais, a produção em massa de equipamentos de laboratório ou para promover uma investigação sobre o mau funcionamento de qualquer ramo da economia. Os representantes dos usuários terão uma função importante, juntamente com os representantes dos produtores e do Estado, no escalão superior das indústrias estatizadas centralizadas. (…) A assembléia democraticamente eleita adotaria, emendaria, escolheria entre planos perspectivos internamente consistentes para a economia como um todo” (p.346).

 

Isso é socialismo?

 

O autor, para discutir a questão acima, recapitula o exposto de sua proposta. Predominância da propriedade estatal, social e cooperativa; planificação consciente dos investimentos; administração central de questões microeconômicas de grande relevância; preferência pela pequena escala; existência de concorrência para se ter escolha; os trabalhadores devem ser livres; o Estado determinará políticas de renda, rendas diferencias, restrição de monopólios e estabelecimento do que estará fora do mercado, e as regras para aquilo que estará nele; a manutenção de certa desigualdade social, bem como a orientação para a geração de trabalho como prioridade ao lucro; distinção entre governantes e governados; existência de escassez relativa e seus conflitos; opção das nações por seguirem esse modelo; e existirá comércio entre as nações.

 

Conclusão

 

“É claro que o papel do Estado será muito grande, como proprietário, planificador, definidor de prioridades econômicas e sócias. (…) O perigo não é o voto para ‘restaurar o capitalismo’.(…) O perigo maior é que numa economia tão ‘politizada’, especialmente no que se refere “a política de preços e rendas e aos investimentos, as tensões resultantes levem a crises econômicas que poderiam destruir o equilíbrio econômico e político. (…) Pelo menos o socialismo aqui pensado deve minimizar a luta de classes, fornecer a base institucional para uma vida tolerável e tolerantre, com padrões materiais razoáveis, um grau factível de soberania do consumidor e uma ampla escolha de atividades para os cidadãos” (p.351)

 

“Com esse tom feliz (?) devemos terminar nossa excursão por um futuro possível, viável. Muitas das proposições apresentadas aqui estão abertas a críticas, e espero que sejam criticadas. Este é um longo ensaio (longo demais?) que pretende provocar socialistas e anti-socialistas, provocá-los para que pensem bastante sobre o possível, sobre alternativas. Se for bem sucedido nesse objetivo o autor ficará satisfeito” (p.352).

 

 

 


[1] Andrade, C.D. de Divagação sobre as ilhas, in Poesia completa e prosa, Nova Aguilar, 1977

[2]“Para mim é mais gratificante passar uma tarde ouvindo uma das grandes óperas de Mozart do que discutindo a revolução” NOVE, A Economia do Socialismo Possível, Ática, 1983, p.11

[3] Fala de Jacob Gorender em seminário organizado em 2002 pelo DCE-USP intitulado “Socialismos”.

[4] “Um estado de coisas que possa existir na maior parte do mundo desenvolvido, no decorrer da vida de uma criança já concebida, sem termos de fazer ou aceitar suposições implausíveis ou artificiais acerca da sociedade, dos seres humanos e da economia” (NOVE, 1983, p.303)

[5] Questionando a proposta de planificação de Mandel, Nove irá perguntar: “How by this route can one discover the relative intensity of people´s wants, which is signalled (however imperfectly) by willingness to pay” (Nove, NLR, 1987, p. 100)

[6] New Lanark foi uma experiência concreta realizada por Robert Owen no início do Século XIX. Classificado por Frederich Engels (1955) como um socialista utópico, Owen passou a gestão de uma empresa sua para os próprios trabalhadores (incluindo a definição da política de produção, horários e salários). Choque para o empresariado da época, a indústria aumentou em muito sua produção e prosperou, pagando melhores salários. Mas acabou fracassando quando Owen se afastou da Inglaterra e não teve mais o dono para mediar alguns conflitos.

[7] Como só o Estado emite e dá crédito, e controla o limite de crescimento de todas as empresas (controlando inclusive as cooperativas e empresas privadas), não tendo assim ninguém além dele concentrando capital, somente ele terá o poder de realizar investimentos de grande porte.

[8] Tal definição fica clara se pegarmos a discussão do próprio Marx em ‘Para a crítica da Economia Política’(1983) sobre ‘O método científico’.

[9] Talvez, por questões metodológicas dessa monografia, fosse até mais interessante que eu tivesse utilizado um livro propositivo de Mandel ao invés de seus artigos de discussão com Nove. Mas são esses artigos que permitem, por outro lado, esclarecer as divergências que em certo sentido espero ao final do trabalho mostrar que não são tantas, e talvez inclusive estejam fora de lugar.

[10] Para isso utiliza o exemplo de uma pessoa que gasta mais com férias não necessariamente prefere mais suas férias que a compra de um piano para seu filho pois existem custos e outros fatores envolvidos na escolha.

[11] “Mas um ‘mercado’ dos bens de consumo individual só é realmente sustentável se for realmente democrático – isto é, se as células eleitorais de cada um aí tiverem o mesmo peso. Estas células são os rendimentos de cada um. Se estes rendimentos são desiguais, este voto está imediatamente falsificado: há pessoas cujo voto vale muito mais do que o de outras” CASTORIADES, C. ‘Autogestão e Hierarquia’ em “Socialismo ou Barbárie” Brasiliense, 1979, p. 224

[12] Em certo sentido, Nove questiona a eficiência de se planejar a infinidade de produtos distribuídos pelo mercado, mas não coloca essa ineficiência como uma impossibilidade de sua execução. Ou seja, destaco a diferença existente entre afirmar a não exeqüibilidade da ineficiência em sua execução.

[13] Mandel (1986) p.33

[14] “Mas o socialismo é algo mais vasto que suas manifestações históricas e continua a ser o caminho mais adequado às lutas sociais que tenham como finalidade estabelecer o máximo possível de igualdade econômica, social educacional como requisito para a conquista da liberdade de todos e de cada um” Candido, A. Prefácio in Singer P. Economia Socialista, Perseu Abramo, 2001 p.9.

[15] A exemplo de Singer (1999), Morris (2002), Haddad (2000), Lênin (1979), Guillerm e Bourdet (1976).

[16] Schumpeter, J. “Capitalismo, Socialismo e Democracia”, Fundo de Cultura, 1961. 

[17] Whyte e Whyte, “Making Mondragon”, ILR Press,  1988

[18] Marx K. “O Capital”, Livro III, Abril, 1983, p.335

[19] Marx, K. Salário, Preço e Lucro, Abril, 1982, p.184, grifos do próprio Marx

[20] Mais a frente iremos definir o conceito de concorrência para Nove.

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