Visões da Utopia: entre Karl Mannheim e Russel Jacoby – Fernando Kleiman

“O olhar lançado à vida transformou-se em ideologia, que tenta nos iludir escondendo o fato de que não há mais vida”.

Theodor Adorno, Mínima Moralia

 

 

O trabalho que segue tem como objetivo elucidar algumas questões relacionadas ao que caracteriza um fenômeno social contemporâneo definido por alguns autores como indícios do fim das utopias.[1] Olhamos para as pessoas nas ruas, lemos os jornais, ouvimos discursos, palestras, entrevistas, e a maioria dos conteúdos tratados estão diretamente relacionados com nosso cotidiano vivido mais imediato (ou encontramos formas de fazer essa relação). Sabemos da vida de celebridades, planejamos viagens ou estratégias para obter um trabalho, nem que seja temporário, queremos encontrar nossos amigos. Discutimos política e tentamos entender como as coisas podem melhorar. Algumas mudanças apontam para melhoras, e muitas vezes por elas tendemos a nos interessar. Mais ou menos, o pano de fundo parece ser consensual.

Ao mesmo tempo, tanto nos meios acadêmicos, quanto em espaços comuns da convivência social, dizemos que o mundo tem muitos problemas e, em relação à maioria deles, compartilhamos a sensação de que nos sentimos impotentes para resolvê-los. Voltamos aos consensos: é tudo muito complexo, os problemas são os políticos, o funcionamento da política ou o desinteresse pelas pessoas, o desinteresse das pessoas, esse estresse cotidiano sob o qual, como todo mundo está, eu também estou. Já não se discute mais: a economia de mercado é um problema, gera desigualdades que ninguém, salvo raríssimas exceções, defende mais como naturais ou justas. Não se defende a má situação do outro, apenas o direito da minha condição “mínima”, que não é associada à primeira, afinal se dependesse de mim ninguém passaria fome ou pediria dinheiro nos sinais.

É brilhante a citação que Russel Jacoby faz de um discurso de Raymond Aron e que resume bem a sensação: “Por mais imperfeita que seja sob muitos aspectos, a sociedade ocidental avançou suficientemente (…) para que as reformas pareçam mais promissoras que a violência e a desordem imprevisível” (JACOBY, p.17). Por motivos diversos, perdemos de nosso horizonte a possibilidade que o mundo daqui alguns anos seja radicalmente diferente deste que hoje vivemos. Por mais que a história possa sempre guardar possibilidades imprevistas, parece que estas estão sumindo, ou estão cada vez mais sendo vistas meramente como indesejáveis (por mais contraditório que o imprevisto pudesse, inclusive conceitualmente, ser).

Assim como Karl Marx afirmava na introdução de seus Grundrisse que “a Economia Política não é tecnologia”[2], a sociologia também não o é. Dessa forma, o objetivo aqui colocado não é o de apontar soluções para nossa questão, mas apenas explorá-la com radicalidade suficiente para tentar tornar mais claras as conseqüências de suas manifestações, ou ao menos faze-lo pelo permanente diálogo dos autores selecionados.

Para iniciar nosso trajeto, precisamos, em primeiro lugar, definir qual o conceito de utopia que iremos utilizar ao realizar a discussão proposta. A primeira possibilidade é recorrer ao Dicionário Crítico de Sociologia, de Boudon, e simplesmente buscarmos sua definição. Diz Boudon: “o termo utopia designa tanto um gênero literário, uma espécie de ficção política, quanto a tentativa, freqüentemente coercitiva e às vezes brutal, de realizar uma forma de organização social em que se presume materializar-se um Ideal considerado absolutamente bom” (BOUDON, p.593). Mais à frente o autor especifica melhor suas interpretações: “constitui-se em oposição aos valores dominantes da sociedade em que nasceu(…)distingue-se por seu absolutismo(…)autoritarismo(…)nessas pequenas sociedades fechadas onde a felicidade consiste em viver entre iguais. (…) [Algumas utopias] nos propõe uma sociedade de abundancia, outras, uma sociedade de rigorosa parcimônia; umas, uma sociedade de santos, outras uma sociedade de heróis. (…) Procede de uma insatisfação fundamental em relação às condições presentes da existência social”. Soma-se a sua caracterização do termo o desprezo pelo gradual.

Além disso, existem diferentes direções que as utopias assumem. Podem ser milenaristas ou naturalistas, buscando pela solução dos problemas mundanos permitir a plena realização dos seres humanos como sujeitos; ou podem simplesmente buscar pela veemente afirmação de valores, e independente de seus custos, a construção de uma utopia ética. Em seu caminho, que nunca é o fundamental da construção utópica, conflitam-se as opções entre “mudar” ou simplesmente “fazer com que possa chegar” ao estado almejado. Dessas diferenças temos também a postura de quem busca a utopia sendo ativista, e busca impor, disputar suas concepções, ou simplesmente permitir a mudança pela exemplaridade. Conflitam-se, na história, utopias colocadas em projetos, que se limitam ao raio de abrangência da elocubração realizada, e as que tentam se generalizar, tornando-se modelos teóricos que tentam nos levar a compreensão da importância de sua realização.

Enquanto função das utopias, ainda em Boudon, encontramos os traços de permitir a existência de determinadas comunidades especificas (cuja estrutura se organiza com base nesses elaborados valores) ou, de forma mais abrangente, o efeito de permitir que indivíduos e grupos simplesmente mantenham a esperança (apontando o risco de que pela sua radicalidade caia-se no autismo!).  Por fim, apontando ainda que nem toda utopia esteja presa à esfera do político[3], teremos uma citação que merece destaque. Querendo construir um contraponto final à forma como Karl Mannheim irá construir seu conceito de utopia, Boudon contesta a função da utopia como “motor da história ou sal da terra”. Mas ele mesmo ao final afirma: “a utopia é a expressão, talvez mesmo a materialização, do Desejo de anular a distancia entre o que a ordem social é e o que deveria ser, se fosse possível torna-la ‘satisfatória’” (MANNHEIM, p.598) que é exatamente de onde partiremos para construir nosso princípio de diálogo com Karl Mannheim.

Pois, diferente do apresentado por Boudon, mais que uma definição clara de termos, o que Mannheim almeja é compreender os laços onde se entrecruzam ideologias e utopias no desenvolvimento histórico da sociedade industrial. Escrito em 1929, seu livro “Ideologia e Utopia”[4] busca categorizar manifestações de utopias em formas de pensamento utópico que podem ser verificados em autores e movimentos selecionados. Para tanto, utopias são entendidas como um “estado de espírito” incongruente com o estado de realidade dentro do qual se insere. Se se transforma em conduta tendem a abolir a ordem vigente, total ou parcialmente, sendo por isso manifestação da intenção de transcendência, que é seu elemento fundamental. Quando essa transcendência apontar para uma justificação da própria ordem, então sua categorização passará a de ideologia, o que depende do estágio / grau de realidade ao qual esteja associado. Toda utopia será sempre irrealizável parcialmente, apenas do ponto de vista daquele momento histórico particular. Dessa forma, toda utopia será sempre relativa, pois deve mostrar-se viável em outra ordem futura, o que introduz o elemento dialético da própria definição entre utopia e ordem[5].  Dando uma coloração mais marxista ao conceito de utópico (enquanto método e não enquanto conceito) teremos a definição de que o elemento utópico terá sempre uma relação estreita com classes em ascensão, dado que as elaborações das classes dominantes tendem sempre à composição de ideologias (justificadoras da ordem). Isso ressalta uma vertente importante da discussão proposta, que é a ligação direta entre utopia, ideologia e dominação.

Mas nem todo pensamento utópico concretiza-se enquanto utopia, mesmo quando de sua origem estar relacionada à superação de relações de opressão. Será necessário observar a história para ver que o que era parcialmente utópico apresentou possibilidades que de fato permitiram o rompimento de laços passados; pensamentos ideológicos apenas serviam para sua dissimulação.

Dessa forma podemos sintetizar o conceito como sendo uma união entre a transcendência e a transformação social. Geralmente sua formulação relaciona-se com idéias concebidas por indivíduos mas que são assumidas por grupos, que as levam à frente e permitem a sua prova. Diz o autor: “Com efeito, pode-se constatar, ainda mais, que se trata de uma dimensão bastante essencial da história moderna o fato de que, na gradativa organização da ação coletiva, as classes sociais somente se tornam eficientes na transformação da realidade histórica quando suas aspirações se encontram encarnadas em utopias apropriadas para a situação em mudança” (MANNHEIM, p.231). Ou ainda, quando da emergência da mentalidade utópica nos estratos oprimidos: “é neste ponto que tem inicio a política, no sentido moderno do termo, se entendermos por política uma participação mais ou menos consciente de todos os estratos da sociedade na consecução de alguma finalidade mundana, em contraste com a aceitação fatalista dos acontecimentos como são ou com a do controle dos de ‘cima’”(Ibid, p.236). Pois “é o impossível que faz nascer o possível”(Ibid, p.237).

Será então, a partir dessa complexa definição do elemento utópico que o autor desenvolverá as etapas do pensamento utópico na história, ou o que ele classificará como formas da mentalidade utópica. Em primeiro lugar, diferentemente daquilo que fazem muitos teóricos de tomar a formulação do conceito, sua expressão primeira, como sua origem, o que levaria a ter Thomas More como o pai da Utopia em 1516, Mannheim dirá que a primeira forma da mentalidade utópica irá aparecer em 1921 com o religioso Thomas Munzer, como também é ressaltado por Paul Ricoeur[6]. Munzer, um autor quiliástico e próximo do anabatismo, busca formas de romper com o poder que está instituído. O Quiliasma é a doutrina segundo a qual os predestinados após a morte ficariam ainda mil anos na terra, no gozo dos maiores prazeres. Sua formulação era a de uma esperança otimista no presente relacionado ao futuro, articulado à idéia de futuro. É uma formulação sensorialmente alerta ao presente concreto e imediato. Mannheim o coloca como primeiro utópico, pois é a primeira vez em que se constata que a transcendência encontra-se diretamente relacionada à superação de ordem vigente, e que essa busca a superação da opressão presente.

A partir da idéia quiliástica temos o surgimento, enquanto formulação, de segunda forma da mentalidade utópica, caracterizada pela utopia liberal-humanitária. A partir da idéia de fé permanente, sendo o elemento utópico do vir-a-ser colocado como central numa perspectiva linear da história, essa utopia será fruto da crença no desenvolvimento e progresso do capitalismo ocidental. Será construída a idéia da necessidade de processos de educação e formulação ideal para permitir a mudança da realidade pelo conhecimento. Sua manifestação se dará inclusive em termos do fortalecimento das universidades como lócus de criação e fortalecimento da transformação almejada.

A terceira forma descrita é a formulação da utopia conservadora, o que é, no desenvolvimento das utopias, uma contra-utopia. Segundo Mannheim a idéia conservadora é uma utopia no sentido que dá forma teórica para a idéia de que “as coisas demoram para mudar, assim como a própria vida”. O diagnóstico é que seu surgimento se dá pelo fortalecimento do ideal utópico liberal que, ao ganhar espaço, aponta aos conservadores a necessidade eles tenham suas próprias elaborações justificadoras. Sendo assim, não passa de uma reação às utopias que visa teorizar a própria ordem.

Por fim, nos escritos de Mannheim aparece a quarta e última forma de manifestação do pensamento utópico, a utopia socialista-comunista. Sua formulação surge da crítica ao socialismo utópico do século XVIII que tertia ficado preso às possibilidades comuns existentes (instituições comunistas do presente e do passado). Partindo da premissa que a idéia é capaz de gerar a sua própria força, nessa utopia teremos uma reelaboração do conceito de história que coloca o passado e o futuro como tendo existência maleável no presente e que cientificamente permite compreender os movimentos históricos que permitirão a transformação efetiva da ordem vigente.

Em resumo ao processo apresentado o autor dirá que: “a experiência quiliástica localiza-se fora do domínio do tempo, mas, nas ocasiões em que irrompeu no domínio temporal, santificava o momento incidental. A experiência liberal estabeleceu uma conexão entre a existência e a utopia ao reportar ao futuro a idéia, enquanto objetivo pleno de significado e permitindo, através do progresso, que as promessas da utopia venham, pelo menos em alguns aspectos, gradativamente a ser realizadas em nosso próprio meio. A experiência conservadora se funde ao espírito, que, em um dado momento, surgiu sobre nós vindo de fora, e ao qual damos expressão, com o que já existe, permitindo que se tornasse objetivo, se expandisse em todas as dimensões, dotando, assim, cada acontecimento de um valor intrínseco e imanente” (MANNHEIM, p.260). Ao mesmo tempo em que se consolida, a intensidade utópica também se abranda: “cada utopia que se forma em um estágio posterior de desenvolvimento, manifesta uma aproximação maior ao processo histórico social. Quanto a este aspecto, a idéia liberal, a socialista e a conservadora nada mais são do que estágios diversos e, na verdade, formas de oposição no processo que vai continuamente se distanciando do quiliasma e se aproximando cada vez mais dos acontecimentos deste mundo” (Ibid, p.272). Verifica-se, dentro do ideal socialista-comunista que: “o esforço utópico visando a um objetivo e a uma possibilidade, intimamente relacionado a ele, de uma perspectiva ampla desintegram-se, no conselho consultivo parlamentar e no movimento sindical, em mero conjunto de orientações para dominar um vasto número de detalhes concretos, com vista a assumir uma posição política quanto a eles” (Ibid, p.274). E é por isso que ao final do capítulo em que mais especificamente desenvolve este trajeto do desenvolvimento da mentalidade utópica, Mannheim dirá que “das duas tendências em conflito no mundo moderno – as correntes utópicas em luta contra uma tendência complacente de aceitar o presente – é difícil dizer de antemão qual acabrá por vencer, pois o curso da realidade histórica que determinará esta vitória repousa ainda no futuro. Poderíamos mudar toda a sociedade amanhã, caso todos concordassem. O verdadeiro obstáculo é que cada indivíduo se acha preso a um sistema de relações estabelecidas que, em grande parte, entrava sua vontade. Mas estas ‘relações estabelecidas’ repousam, em última analise, sobre decisões não controladas dos indivíduos. A tarefa consiste, portanto, em remover essa fonte de dificuldade, revelando os motivos ocultos subjacentes às decisões do indivíduo, e dessa forma colocando-o em condições de realmente escolher. Então, e somente então, suas decisões realmente procederão dele” (Ibid, p.284).

Fugindo à futurologia, em seu trecho mais polêmico, discutido anteriormente por Boudon, teremos que “é possível, portanto, que no futuro, em um mundo em que nada haja de novo, em que tudo esteja terminado, sendo cada momento uma repetição do passado, venha a existir uma condição em que o pensamento seja despido de quaisquer elementos ideológicos e utópicos. Mas a completa eliminação de elementos transcendentes à realidade, em nosso mundo, nos levaria a uma ‘constatação de fato’ que significaria, em última analise, a decomposição da vontade humana. (…) Iríamos, então, nos defrontar com o maior paradoxo imaginável, ou seja, o do homem que, tendo alcançado o mais alto grau de domínio racional da existência, se vê deixado sem nenhum ideal, tornando-se um mero produto de impulsos. Assim, ao término de um longo e tortuoso, mas heróico desenvolvimento, justamente no mais elevado estagio de consciência, quando a história vai deixando de ser um destino cego e se tornando cada vez mais uma criação do próprio homem, o homem perderia, com o abandono das utopias, a vontade de plasmar a historia e, com ela, a capacidade de compreende-la” (Ibid, p.285)

 

Pois essa pode ser uma interpretação exata daquilo que Russel Jacoby nos tenta descrever com seu livro “O fim da utopia”[7]. Acima de uma tentativa de provar a ausencia de sentimentos utópicos na sociedade de fim do século XX, contando com um abrangente conjunto de autores com quem dialoga, podemos entender sua obra como uma tentativa de encontrar, daqueles elementos trabalhados por Mannheim como indícios de uma aproximação cada vez maior com fatos do próprio tempo histórico presente, com uma vida cada vez mais pragmática e ajustadas à realidade, quais deles tem sido reforçados nos chamados “campos de resistência” do pensamento comum.

Nesse movimento o autor irá afirmar que o socialismo reformado que então apresenta, nada mais é que uma visão liberal de que mudanças (e não rupturas) com o capitalismo podem gerar igualdade e eficiência. Será listado um extenso conjunto de intelectuais de uma “nova esquerda” para demonstrar que, em seu conjunto, não existe nada além de recursos discursivos para o abandono da idéia de revolução.

Usando como referencia a própria idéia de Mannheim dos movimentos de formação de utopias e contra-utopias teremos um processo onde esse abandono dos sonhos pela esquerda, o próprio liberalismo perde o seu chão, “torna-se instável e flácido” (JACOBY, p.23). Nesse momento, a questão relevante não é tanto a vitalidade do liberalismo em si, mas os motivos e as conseqüências desse abandono de sonhos pela esquerda. O autor busca assim compreender de que forma a derrocada da União Soviética e da aliança comunista, vermelha, enfraquece a própria idéia de socialismo, e mais, a idéia de uma sociedade nova e diferente. Idéias essas que para serem resgatadas talvez precisassem romper com próprio pragmatismo da política, do fazer, mostrar como se faz e provar que é possível faze-lo no agora, que muitas vezes não considera que esse mesmo agora pode ser o condicionante que impossibilita essa mesma prova exigida. Comentando um autor chamado Glenny, Jacoby dirá que “o socialismo que sobrevive na Europa oriental pouco mais é do que um ceticismo a respeito do mercado e um desejo de preservar as estruturas da seguridade social(…)a questão é que por toda a parte a esquerda vai se tornando prática, pragmática e liberal” (JACOBY, p.31).

Exemplos dados de “propostas socialistas atuais” como os cupons do John Roemer, ou o sistema de redivisão do trabalho por instituição proposto pela Economia Participativa de Michael Albert, apresentam-se sempre, e é isso o que ressalta o autor, como “soluções faça você mesmo”. Daí torna-se interessante o comentário feito pelo autor a respeito das idéias de Georg Lukács para quem “a economia socialista não era o verdadeiro objetivo; era apenas uma precondição para que a humanidade avançasse em direção a uma nova cultura mais humana (…) [de forma a] libertar-se da obsessão com a economia” (Ibid, p.47)

É por isso que o autor irá apontar que, citando metáfora utilizada por Lukács, se cada individuo tem dores de dente que lhe atrapalha a vida, buscava-se “a cura de todas as dores de dente para a humanidade inteira: o fato de tal meta não mais passar pela cabeça das pessoas, nem poder ser reafirmada, diz muito sobre o fim da utopia” (Ibid, p.47).

 

E será esse o sentido desenvolvido pelo seu trabalho. Em primeiro lugar, fazendo uma interessante discussão em torno do tema do Multiculturalismo como forma de enganação ideológica dos movimentos de contestação quando nada mais se faz que buscar formas de dizer da liberdade e da igualdade dentro de um sistema de instituições cujo principio básico de funcionamento é a desigualdade e a injustiça. Dessa forma, toda contetação formulada desse ponto de vista, ao se restringir às regras do jogo existente, não são nada além de retificações, em acordo com o tom de sua própria orquestra. Por fim, dentre os militantes dessa causa, o autor não identifica entre suas aspirações nada mais que a disputa por poder e dinheiro, da mesma forma que qualquer outro grupo ou instituição faz dentro do sistema como está. “A estrutura economica da sociedade – seja ela identificada como sociedade industrial avançada, capitalismo ou economia de mercado – permanece como o elemento invariável; poucos seriam capazes de imaginar um projeto econômico diferente (…) O segredo da diversidade cultural é a sua uniformidade política e economica. O futuro fica parecendo o presente com mais opções” (JACOBY, p.62). Ou ainda, “A nova popularidade do pluralismo não pode ser explicada por uma única razão. A rápida derrocada do socialismo tirou o fôlego intelectual dos esquerdistas; carentes de confiança ou fé numa completa reestruturação social, eles recuaram para crenças parciais em culturas parciais – o pluralismo (…), a ideologia do mercado e do individuo, torna-se o principio fundamental dos liberais e dos esquerdistas” (Jacoby: 70).

Mais a frente essa critica é radicalizada  onde “o objetivo principal é o poder, ou a distribuição do poder, de empregos ou recursos. O clamor por poder parece algo radical e grave, especialmente associado ao multiculturalismo. Na realidade, o poder destituído de uma visão ou de um projeto pouco significa; passa a ser apenas uma exigência de que determinadas pessoas exerçam mais autoridade e controle” (JACOBY, p.89); “simplificando, os multiculturalistas radicais querem estar mais representados na organização. O que é perfeitasmente compreensível, sem ser propriamente radical, e dificilmente político. Parece uma questão de apadrinhamento, e não de revolução” (Ibid, p.91); ou ainda, “houve um tempo em que os revolucionários tentavam ou fingiam tentar promover revoluções, alimentado o sonho de uma sociedade ou de um mundo diferente. Hoje chamados de multiculturalistas radicais, estão em busca é de cargos mais importantes” (Ibid, p.92).

Mais importante do que a crítica ao multiculturalismo em si, é a hipótese levantada pelo autor de que a carencia de crenças reais em alternativas transcendetnes institucionaliza e pragmatiza as possibilidades militantes / ativistas, que assim deixam de ser utópicas ou revolucionárias. Será no segundo tema tratado como manifestação desse fenômeno, a massificação da cultura, onde o autor irá aprofundar a questão da própria produção de teoria crítica como ausente de critica. Numa espécie de total fetichização, a forma como a cultura passa a ser banalizada faz com que o que era mero populismo, passe a ser também uma forma clara de conformismo.

E é essa banalização dos padrões pela sociedade de consumo que, por fim, o autor irá trabalhar para dentro da própria instituição que tanto os utopistas liberais, como o próprio Mannheim, colocavam algum crédito para criar caminhos à ruptura da ordem: a intelectualidade. Destituída de seus espaços de marginalidade, quando a atividade intelectual se torna valorizada pelo mercado e atinge níveis de aceitação social que se tornam o fim mesmo das atividades de pesquisa, a intelectualidade também perde sua radicalidade. Seria como se a política perdesse seu conteúdo utópico com a pragmatização de seus programas e formas de disputa; os movimentos de contestação, como o exemplo do multiculturalismo, perdessem seus sonhos pela sua instituicionalização; e a cultura perdesse seu conteúdo pela massificação; a intelectualidade perderia sua critica como uma síntese na qual tem influencia os três processos. E esse claramente seria um desfecho na discussão em torno dos elementos que colocam como indícios do chamado fim da utopia.

Mas, assim como tenta Mannheim, Jacoby aposta na história quando termina seu livro o fim da utopia com uma interessante reflexão, que transcrevo a seguir:

 

“O que se pode fazer? A pergunta, periodicamente feita a todos os críticos, insiste num pragmatismo que é inimigo do utopismo. Não há nada a fazer. O que não quer dizer que nada será pensado, imaginado ou sonhado. Pelo contrário. O empenho em vislumbrar outras possibilidades de vida e sociedade continua sendo urgente, e constitui a condição essencial para se fazer alguma coisa. Precisamos, segundo T.W. Adorno, ‘contemplar todas as coisas da forma como se apresentariam do ponto de vista da redenção’. Isso significa encarar o mundo “tal como ele se manifestará um dia à luz messiânica’.

            Este dia está mais distante do que nunca. Ou será que não? A história costuma surpreender até mesmo seus estudiosos mais diligentes. Ninguém foi capaz de prever a rápida derrocada do sistema soviético em 1989; especialistas cautelosos acreditavam que seu império mortífero ainda duraria mais conquenata anos. A década de 1960 explodiu praticamente sem aviso prévio; os observadores, em sua maioria, haviam classificado os anos 50 como uma era de conformismo e apatia, e esperavam outro tanto. Quem poderá garantir que o futuro não nos reserva surpresas semelhantes?” (JACOBY, p.256).

 

Assim, chegamos a um interessante ponto para podermos concluir um pouco do processo até aqui trabalhado. Não é a opinião em si, tanto pública como especializada, que se coloca como limite ou possibilidade à utopia. É o próprio movimento que a sociedade apresenta, com suas consistências e inconsistências, que abre e fecha essas possibilidades. Mais do que aceitar a idéia de fim da utopia, ou rejeita-la dentro do processo de construção social, chama a atenção o fato de fazemos parte de um movimento maior de tensões sociais que podem encontrar no resgate das mentalidades utópicas, chão para sua ação. Ao menos que possamos crer que ao futuro nos está reservada a permanente apatia e pragmatismo que o mundo hoje apresenta, a possibilidade de uma mudança no processo de concepção da própria possibilidade de mudança é, talvez, uma primeira esperança que possa ser almejada.

Dentre as discussões apresentadas, existem questões que ficam presentes: talvez por uma influencia de uma concepção acadêmica mais institucionalizada do pensamento dos países do norte, fundamentalmente europeu e estadunidense, parece-nos que esse processo carece de um diálogo mais intenso não só das utopias acabadas pelos pensadores em questão, quando da classificação das mentalidades utópicas e de sua ausência atual, mas também daquilo que poderíamos entender como utopias populares. Rompendo um pouco o cerco construído por Jacoby, onde o populismo cultural seria manifestação de um esvaziamento do conteúdo da própria cultura, ainda assim, em um diálogo mais intenso com pensadores com Walter Benjamim, existem história das resistências das classes oprimidas que dão substancia a construção de utopias diversas. Das religiosas, como a de Dom Bosco que previu a terra que jorraria leite e mel, as atuais propostas dos movimentos sociais, que em sua maioria desembocam para organizações locais independentes do grande capital, todas essas propostas ainda dispersas podem rechear melhor o pão da utopia digerido. Talvez sejam esses espaços também espaços de resistência que tenham sua fundação coerente com a definição da utopia como transcendente, contestadora da ordem da organização atual do poder, ao mesmo tempo que oriundas dos oprimidos. Podem ser esses alguns dos lócus que a história guarda suas surpresas.

Mesmo assim, a discussão levada a cabo dialoga com a afirmação de Paul Ricoeur que nos diz que “em tempos onde há um bloqueio de sistemas que falharam mas que não podem ser quebrados, a utopia tem um papel” (RICOEUR, p.300). A questão talvez seja apenas saber quando esse papel encontrará uma cultura apropriada para se desenvolver.

Isso seria uma resposta à hipótese otimista de Jacoby, que contesta a exploração pessimista de Mannheim. Se concordamos que é a história que pode responder pelo seu próprio desenvolvimento se esse processo tornar-se-á possível, até porque também não pretendemos adentrar as cearas da futurologia, a tarefa passada por Mannheim e levada a cabo por Jacoby merece ser levada adiante: seguir o processo de “remover as fontes de dificuldades” que tornam as pessoas impossibilitadas de transcender a ordem vigente. Um caminho pode ser esse, de fazer o próprio esclarecimento dessas difculdades, pelos processos presentes do qual somos parte. E aí a sociologia, sem nenhum caráter instrumental, pode ter um papel importante a cumprir.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Brasília, 28 de fevereiro de 2005


BIBLIOGRAFIA

 

ADORNO, Theodor Mínima Moralia, Editora Ática, São Paulo, 1993

 

BOUDON, Raymond Dicionário de Sociologia, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1990

 

CASTORIADIS, Cornelius The Imaginary Institution of Society,  MIT Press, Massachussets, 1987

 

JACOBY, Russel  O fim da Utopia: política e cultura na era da apatia , Record, São Paulo, 2001

 

MANNHEIM, Karl  Ideologia e Utopia, Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1972

 

MARX, Karl  A Ideologia Alemã e outros escritos (primera parte) , Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1965

 

MARX, Karl ENGELS, Frederich Obras Escogidas em dos tomos, Ediciones em lenguas extrangeras, Moscú, 1955

 

MARX, Karl Manuscritos Econômico-Filosóficos e outros textos escolhidos, Abril Cultural, São Paulo, 1974

 

PANITCH, Leo LEYS, Colin  Necessary and Unecessary Utopias, Merlin Press, Suffolk, 1999

 

RICOEUR, Paul Lectures on Ideology and Utopia, Columbia University Press, New York, 1986

 


[1] Os autores selecionados, trabalhando de forma crítica a questão das transformações sociais, são Karl Mannheim e Russel Jacoby. Ambos irão diagnosticar, em diferentes períodos, momentos de retração do pensamento utópico em seu próprio tempo e buscarão encontrar refúgios para suas esperanças no futuro. Diferentemente do caminho aqui percorrido, o mesmo trabalho poderia ser feito ao lado de intelectuais conservadores ou liberais, o que poderia resultar em análises diferentes, pelas quais a opção aqui não foi feita.

[2] MARX, 1974

[3] “Mas a utopia não se deixa encerrar na esfera do político. Na forma orgiástica ou na forma acósmica assemelha-se à arte e a religião” (Mannheim, p.598). Por acósmica o autor refere-se às utopias de seitas e grupos religiosos minoritários que geralmente possuem referencias construídas em algumas espécie de guru.

[4] MANNHEIM, 1972

[5] Mannheim utliza o interessante conceito de Lamartine de utopia como uma verdade “pré-matura”.

[6] RICOEUR, 1986

[7] JACOBY, Russel  2001

2 Comments

Leave a comment