O Problema do Desejo na Sociedade Capitalista – Fernando Kleiman

Introdução

 

Pretendo com este trabalho desenvolver a idéia da dificuldade do ser humano viver como um ser desejante na sociedade capitalista. Utilizarei uma concepção da Sociedade Mercantil baseada em Marx e do desejo baseada na Psicologia Social.

 


 

Necessidade e desejo

 

O ser humano, um animal eminentemente simbólico, possui outras motivações na vida além dos instintos de sobrevivência. A existência orgânica dos homens está vinculada a situações simbólicas qualitativas. Os impulsos segundo os quais nós realizamos nossas ações podem ser classificados de dois modos distintos: a necessidade e o desejo.

 

Necessidade: é o impulso sugerido pelo corpo, um impulso funcional. Surge na carência, ou seja, na falta de algo ao corpo que lhe é fundamental para a sua sobrevivência, e deve ser suprimido. Sendo assim é um impulso comum a todos os animais. Exemplo de sua manifestação pode ser a fome por alimentos e a sua supressão por meio de um tipo adequado de alimento.

 

Desejo: constitui-se em impulso a partir de uma vivência intersubjetiva. Por vivência intersubjetiva entendemos uma situação na qual a geratriz do impulso está inserida, completando-a em sua integridade como pertencente a uma realidade complexa. Sendo assim, vai além do sentido único, por exemplo, de fome, sendo formado por diversos outros aspectos presentes. Se manifesta como um impulso simbólico, não funcional. Contrariamente à necessidade, o desejo (uma “necessidade” simbólica) implica menos o consumo do objeto e muito mais a fruição deste. Um exemplo é o desejo, digamos, por maçã. Na realidade é um impulso para a sensação que foi obtida ao comer maçã em determinada circunstância. Quer-se o “gosto” simbólico da maçã, seu “sabor intersubjetivo” e não apenas a supressão da fome (impulso do instintivo).

 

Walter Benjamin[1] consegue através de seu conto, exemplificar a realidade dos fatos:

 

Era uma vez um rei que chamava seus todo poder e todos os tesouros da Terra, mas apesar disso não se sentia feliz e a cada ano se tornava mais melancólico. Então, um dia, mandou chamar seu cozinheiro predileto e lhe disse: “Por muito tempo tens trabalhado para mim com fidelidade e me tens servido à mesa as mais esplêndidas, de modo que te sou agradecido. Porém, desejo agora uma última prova de seu talento. Deves me fazer uma omelete de amoras igual àquela que saboreei há cinqüenta anos, em minha mais tenra infância. Naquela época meu pai travava guerra contra seu perverso inimigo a oriente. Este acabou vencendo e tivemos de fugir. E fugimos, pois, noite e dia, meu pai e eu, através de uma floresta escura, onde afinal acabamos nos perdendo. Nela vagamos e estávamos quase a morrer de fome e fadiga, quando, por fim, topamos com uma choupana. Aí morava uma velhinha, que amigavelmente nos convidou a descansar, tendo ela própria, porém, ido se ocupar do fogão. Não muito tempo depois estava à nossa frente a omelete de amoras! Mal tinha levado à boca o primeiro bocado, senti-me maravilhosamente consolado e uma nova esperança entrou em meu coração. Naqueles dias eu era muito criança e por muito tempo não tornei a pensar no benefício daquela comida deliciosa. Já rei quando mais mandei procurá-la, vasculhei todo o reino, não se achou nem a velha nem qualquer outra pessoa que soubesse preparar a omelete de amoras. Agora, quero que atendas este meu último desejo: fazes-me aquela mesma omelete de amoras! Se o cumprires, farei de ti meu genro e herdeiro de meu reino. Mas, se não me contentares, então deverás morrer.” Então o cozinheiro disse: “Majestade, podeis chamar logo o carrasco. Pois na verdade, conheço o segredo da omelete de amoras e todos os ingredientes, desde o trivial agrião até o nobre tomilho. Sei empregar todos os condimentos. Sem dúvida, conheço o verso mágico que se deve recitar ao bater os ovos e sei que o batedor feito de madeira de bruxo deve ser sempre girado para a direita de modo que não nos tire, por fim, a recompensa de todo esforço. Contudo, ó rei, terei de morrer. Pois, apesar disso, minha omelete não vos agradará ao paladar, jamais será igual à da velhinha. Pois como haveria eu de temperar a coisa com tudo aquilo que nela desfrutastes àquela época e que vos deixou, senhor, a impressão inesquecível? Faltará o perigo da batalha e o seu picante sabor, a emoção e a vigilância do fugitivo, não será comido com o sentido alerta do perseguido. Não terá o descanso no abrigo estranho e o calor do fogo amigo, a doçura da hospitalidade inesperada. Não terá o sabor do presente incomum e do futuro incerto.” Assim falou o cozinheiro. O rei, porém, calou um momento e não muito depois consta haver dispensado dos serviços reais o cozinheiro, rico e carregado de presentes.

 

Desse modo o humano vive não apenas de instintos mas também de símbolos da sua vida num mundo compartilhado.

 

Muitas vezes o homem tem a própria sensibilidade alterada pela presença das coisas  como símbolos. Rubem Alves[2] retrata muito bem a situação:

 

“O corpo é um produto da educação.

Lembro-me de um cavalheiro, educado num mundo de hábitos alimentares marcados pelos tabus religiosos, e que aprendera a detestar miolo. Foi jantar em uma casa em que foi servida couve-flor empanada. Deliciosa. Após o jantar dirigiu um elogio à anfitriã:

-Divina, a couve-flor…

-Couve-flor? Miolo empanado…

E sem que houvesse uma alteração nos componentes físico-químicos as situação, a linguagem que envolvia o corpo se encrespou, e a polidez se transformou embaraço da saída apressada da mesa para vomitar… Vomitar o quê? Miolo? Absolutamente. Vômito de palavras, rótulos, etiquetas.”

 

De modo algum o impulso físico foi o responsável pelo enjôo mas sim o impulso simbólico, o significado dos “miolos”.

 

Ocorre que em algumas situações esta diferenciação não é tão clara e pode haver uma confusão entre os impulsos gerados pelo contato com o mundo. Sendo assim, alguns atribuiriam a comida o resultado do vômito e não seu símbolo para o cavalheiro. Os objetos naturais não correspondem aos desejados, se não forem ingressados em uma situação inter-humana, que os tornam objetos integrais e simbólicos. Isso vale tanto para o significado do que já foi ingerido como para aquilo que dizemos “desejar”. Dizemos que estamos com fome quando sentimos o cheiro de uma boa lasanha mas na realidade temos, geralmente, o desejo de comer lasanha e não fome simplesmente.

 

Mesmo a reificação do homem indigente carrega ingredientes simbólicos, como citado pelo professor José Moura Gonçalves Filho: os negros escravos, por exemplo, nos engenhos, chegavam a recusar a comida servida pelas mesmas mãos que os açoitavam.

 

 

A satisfação no mercado

 

Com o desenvolvimento das sociedades mercantis não mais o indivíduo pode buscar aquilo que necessita ou deseja (“valor de uso”), quanto terá de obtê-lo por seu “valor de troca”[3].

 

Uma mercadoria, enquanto tal, possui dois valores distintos e fundamentais: valor de uso e valor de troca. Como animais simbólicos os objetos mundanos (dos quais nos servimos para satisfazer nossos desejos ou necessidades) possuem apenas valor de uso. Será a comida para suprir a fome ou a água para “matar a sede”, ou ainda a lasanha para satisfazer o desejo.

 

O valor de troca é a grandeza abstrata de valor, calculada em função da quantidade de horas de trabalho (abstrato) investida na produção social de uma mercadoria, produção conduzida por trabalhadores, em geral, também abstratos. Essa grandeza serve para mediar as trocas realizadas na sociedade de compradores e vendedores, e só assume viabilidade e prevalência dentro de uma sociedade industrial, controlada por valores mercantis.

 

Mas podemos então entrar num questionamento válido: as necessidades dos humanos e seus desejos podem ser satisfeitos pelas mercadorias? Seguindo Lucien Goldmann[4], temos que no mundo capitalista os valores quantitativos tendem a prevalecer, em todas as esferas da vida social, sobre os valores qualitativos. Inicialmente, o fenômeno se dá no mercado quando as mercadorias são, preponderantemente, vistas apenas como valores de troca e não de uso. A valorização abstrata e quantitativa de uma mercadoria é mais importante que sua própria utilidade e processo de formação. Além das qualidades do objeto serem desconsideradas, assim também será o produtor de tal objeto. Os valores humanos contidos na mercadoria, e nela imprimidos pelo produtor serão secundárias ao valor de mercado dado ao objeto.  O homem é desfeito de suas produções, bem como de seus valores que não os monetários. Tudo se torna contábil, desde a aquisição de vestimentas até a aquisição de educação. Tudo é comprável, daí vale um ditado popular classe mediano: “o dinheiro não traz felicidade mas manda buscar”.

 

Além do problema da redução dos bens e serviços a quantidades contábeis, temos o problema da forma como se obtém renda na mesma sociedade. Aos que vivem existirão basicamente duas formas de garantir sua sobrevivência: possuir um meio de produção ou vender sua força de trabalho.

 

A força de trabalho entra nesse mercado como mercadoria, onde o contratante paga ao trabalhador para que este exerça sua ação, orientado pelo primeiro, e em troca de salário. O trabalhador transforma-se em mero possuidor de um valor de troca chamado “força de trabalho”.

 

Como possuidor dos meios de produção o homem, ou mulher,  poderá  ou explorar o trabalho de outros, comprando suas “forças de trabalho” ou trabalhar com sua própria força. Nos dois casos teremos a situação da produção reificada de mercadorias para a troca no mercado. O homem é conduzido por algo externo: a acumulação de capital. O mercado, segundo Goldmann, é anárquico. Tal anarquia é que prende e encolhe os homens, dado que a produção e a distribuição dos bens se dá pela valorização dos valores de troca e não pelas necessidades qualitativas dos indivíduos.

 

Aqueles, por sua vez, que devem se empregar, vendem sua força de trabalho como mercadoria e são controlados pelo mercado, no valor de sua ação, e pelo comprador de sua força, através de ordens. As guias a serem seguidas por suas ações são externas. Receberá em troca um salário que deve ser suficiente apenas para alimentar sua força (não seu espírito), obrigando-o a trabalhar para comer e comer para trabalhar. Este salário tende a ser reduzido ao ponto em que seja totalmente gasto e crie a necessidade de que o trabalhador venda sua força de trabalho mais uma vez.

 

Em todos os casos notamos o poder alienante do trabalho abstrato, transformado em quantidade de valor de troca, e que impede ao agente a participação no seu trabalho exercido, no uso de suas ações para algo determinado por vontade própria e relacionado à satisfação de necessidades e desejos humanos.

 

Numa sociedade de mercado, a própria vida está diretamente vinculada à capacidade acumular valor de troca e poder adquirir aquilo que necessitamos ou desejamos. Sendo assim, será fundamental o “enquadramento” para que possamos viver.

 

Vale dizer que não é só o mercado que é afetado pela reificação. Toda a arte, religião, cultura é mercantilizada e passa a ser calculada em termos quantitativos. “Em princípio, a religião, a moral, a arte, a literatura, não são nem realidades autônomas, independentes da vida econômica, nem meros reflexos desta. No mundo capitalista, porém, elas tendem a sê-lo, na medida em que sua autênticidade se encontra esvaziada por dentro, graças ao aparecimento de um conjunto econômico autônomo que tende a apoderar-se de modo exclusivo de tôdas as manifestações da vida humana.”

 

Conclusão

 

Tendemos a ver uma única forma como possível de nos satisfazer em nossa sociedade, sendo ela o consumo.

 

O consumo pode ser realizado para satisfazer um desejo ou para suprir uma necessidade. A necessidade é o consumo puro e simples: se tenho fome, então como e como para sobreviver. Este costuma ser o saldo desiderativo das sociedades do Grande Mercado: o desejo tende a desaparecer e o homem tende a ser considerado um animal de necessidades; e necessidades que, para serem satisfeitas, precisam passar por uma relação mercantil. Se tenho fome, pago, alguém vende, então como. O indivíduo tenta satisfazer seus desejos como necessidades e assim consome compulsivamente: busca um estado de satisfação que nunca será atingido, já que seus impulsos são simbólicos e não meramente funcionais. Segundo José Moura Gonçalves Filho, o consumismo é uma forma regredida de desejo: forma em que o desejo mais se aproxima de uma necessidade orgânica. As sociedades mercantilistas são inimigas do desejo, condenando o indivíduo à eterna insatisfação pelo consumismo.

 


BIBLIOGRAFIA

 

GONÇALVES FILHO, José Moura     Apostila de introdução à psicologia – FEA/98         O TRABALHO – Dimensão Econômico-Política,  São Paulo, 1998

 

                                                              Apostila de introdução à psicologia – FEA/98  Experiência     Transicional, São Paulo, 1998

 

Apostila de introdução à psicologia – FEA/98 Necessidade e Desejo, São Paulo, 1998

 

MARX, Karl                                       O Capital, Coleção “Os Pensadores”, São Paulo, Ed. Abril Cultural, 1983

 

GOLDMANN, Lucien                           Dialética e Cultura , Rio de Janeiro, Ed. Paz e Terra, 1967

 

ALVES, Rubem                                    Conversas com quem gosta de ensinar, São Paulo, Cortez Editora, 1991

 

Estórias de quem gosta de ensinar, São Paulo, Cortez Editora, 1986


[1] “Omelete de Amoras”, in Walter Benjamin, “Obras escolhidas II – Rua de Mão Única”. Brasiliense, 1993 citado em GONÇALVES FILHO, José Moura  Apostila de introdução à psicologia – FEA/98 Necessidade e Desejo, São Paulo, 1998

[2] ALVES, Rubem  “Conversas com quem gosta de ensinar” São Paulo, Cortez Editora, 1991

 

[3] MARX, Karl  “O Capital”

[4] GOLDMANN, Lucien “Dialética e Cultura”, Rio de Janeiro, 1967

2 Comments

  1. Tomara que saibamos distinguir entre todas as coisas que queremos, e que são belas, as que desejamos – as que qualificam nossa alma. Parabéns pelo seu blog e pela socialização agradabilíssima dos seus interesses e gostos. Cristina.

  2. Adorei ler isso, muito obrigado por esse momento, muito obrigado pela oportunidade de constatar o que sempre desconfiei! Parabéns!

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