Poder simbólico e prática democrática – Loïc Wacquant

Aos amigos e colegas que de vez em quando me perguntavam sobre o visão política de Bourdieu, eu dizia que ele foi sem dúvida a pessoa mais intensamente política que eu já conhecera, e ainda assim, ele não era “político” no sentido convencional que eles e eu reconhecíamos espontaneamente e com que concordávamos (como quando se fala de alguém estar na política). Embora eu não concordasse com essa caracterização limitada, nunca fui capaz de encapsular a atitude intensa que o animava, feita de interesse devastador e de uma cautela carregada de princípios, ardor esperançoso e lucidez sem ilusões, até começar a trabalhar neste volume de ensaios que explicam, ilustram e ampliam suas teorias da e para a produção social da política democrática. Hoje, olhando para trás, eu responderia apenas que ele era, se me permitem esse quase oximoro, sociologicamente político.

Com isso, quero dizer que Pierre Bourdieu nunca baixou a guarda sociológica, nunca deixou esfriar por um instante a sua artilharia analítica, especialmente quando discutia questões políticas, seja nas suas ruminações particulares sobre os eventos correntes, seja nas investigações eruditas sobre as questões da City. Ele se envolveu em questões de poder, políticas públicas e justiça social de modo a romper a separação aceita entre ciência e vida, entre o conceitual e o pessoal, e nunca deixou de atravessar a “fronteira sagrada entre a cultura e a política, o pensamento puro e a trivialidade do ágora”, que ele via como um obstáculo importante à genuína democracia. E o fez sem fechar os olhos para suas diferenças constitutivas, mas, pelo contrário, articulando-as por meio do incessante ascetismo intelectual imposto por sua sociologia. À moda de uma fita de Moebius, a visão científica do mundo de Bourdieu foi o reservatório de sua percepção da política, enquanto a sua avaliação política da realidade social foi o motor de seu interesse nessa realidade e da indignação provocada por ela, e a fonte de sua insistência em introduzi-la na base da ciência social para que pudéssemos aumentar as chances de transformá-la, de finalmente nos tornarmos algo semelhante a “sujeitos políticos” – um ideal regulador com que ele sempre foi comprometido, por mais cético que fosse quanto às chances de sua realização prática. Ele se dedicou a um esforço obstinado e abrangente de “pensar a política sem pensar politicamente” de forma a nos colocar, individual e coletivamente, em posição de refletir e agir de acordo com nossos valores políticos mais prezados, nas nossas atitudes íntimas e esforços profissionais, bem como no palco público preparado para a ação cívica pelas democracias liberais.

Assim como todo o seu pensamento, as visões de Bourdieu sobre a democracia são o produto da aplicação resoluta de um pequeno número de princípios analíticos e posturas metodológicas. O primeiro é o questionamento das formas costumeiras de pensar e agir politicamente por meio da historicização radical de tudo o que se refira à democracia: seu vocabulário, seu discurso oficial e representações comuns, em instrumentos e associações distintivos e, finalmente, mas não menos importante, a disciplina que pretende estudá-la, a ciência política – que entra na sociologia reflexiva da política não como instrumento, mas como objeto de análise, como uma das agências loquazes que contribuem para a operação atual dos regimes democráticos. O segundo é engajar-se precisamente no que essa ciência omite cuidadosamente, a saber, a escavação sistemática das condições sociais de possibilidade das práticas democráticas, que exige uma dupla mudança de foco. Exige, em primeiro lugar, que desçamos do céu das idéias abstratas e grandes ideais (representados pela linha espiritualista da filosofia política que entrou na moda a partir do recuo anti-estruturalista da década de 1970) e arar o solo dos comportamentos políticos, significados e organizações realmente existentes; e segundo, que localizemos não somente as capacidades políticas inscritas nas estruturas formais, mas também as variadas predisposições e esperanças dos agentes concretos e como elas passam a ser dotadas (ou não) de categorias, habilidades e desejos necessários para se jogar o jogo democrático. Resumindo, ela pede que nos façamos a pergunta sobre como se produz e reproduz a divisão entre o que Max Weber chamava “agentes políticos passivos” e “agentes políticos ativos”.

Isso se deve, de acordo com o terceiro princípio de Bourdieu da pesquisa social, ao fato de a democracia, tal como todas as instituições, se realizar nos dois estados do social que são os sistemas objetivos de posições e os pacotes subjetivos de disposições depositadas nos agentes sob a forma de esquemas cognitivos e conativos que informam seus pensamentos, sentimentos e conduta. Os primeiros estão cristalizados no campo político (o microcosmo semi-autônomo onde partidos e políticos disputam a oferta de serviços aos cidadãos) e no campo burocrático (a noção elaborada por Bourdieu para redefinir o Estado como uma arena de lutas pela definição e manipulação dos bens públicos), e os segundos nas estruturas mentais que compõem o habitus político. A sociologia deve apreender cada um por meio de uma análise genética de sua constituição para reconstruir a dialética evolutiva de habitus e campo por toda a gama de configurações históricas, que vão desde situações de acordo e reforço recíproco, numa das extremidades do continuum até casos de desacordo e solapamento mútuo, na outra. Esses dois estados de ação política, o objetificado e o corporificado, têm de se sujeitar a uma leitura duplamente aninhada, a objetivista e a subjetivista (ou, em outra linguagem, estruturalista e fenomenológica), capaz de captar a “dupla verdade” do cosmos político: os cidadãos estão inseridos numa teia de relações restritivas “independentes de sua consciência ou vontade”, como na conhecida expressão de Marx, mas a política trata crucialmente de “vontade e representação”, para citar uma frase de Schoenberg que Bourdieu gostava de invocar a fim de nos lembrar que o mundo social é também feito de e por atividade cognitiva.

Isso nos leva ao quarto princípio da análise de Bourdieu: dar atenção especial à eficácia específica do poder simbólico e aos truques sociais com que eles nos engana a todos, inclusive ao analista social que tem de cuidar para não se deixar envolver pelas mesmas lutas de classificação que está tentando descrever e explicar. Esse princípio é especialmente relevante para a análise da política, na medida em que a “luta política” é uma luta cognitiva (prática e teórica) pelo poder de impor a visão legítima do mundo social”, ou seja, o poder de (re)fazer a realidade preservando ou alterando as categorias pelas quais os agentes entendem e constróem aquele mundo. Isso quer dizer que a sociologia é inescapavelmente uma ciência política, na medida em que ela se coloca em competição com outros produtores profissionais de representações de autoridade da sociedade, como os políticos, jornalistas, especialistas oficiais e comentaristas políticos, e que ela forçosamente perpetra essa “barbaridade absoluta que consiste em discutir o pressuposto fundamental de que somente os políticos têm o direito de falar politicamente”. O desenvolvimento de um lúcido entendimento sociológico das instituições políticas e o fortalecimento de disposições políticas sociologicamente informadas são tanto mais urgentes numa época em que produtos derivados da ciência social – tal como a retórica do mercado, pesquisas de opinião, grupos de foco, e outras técnicas de marketing político – tornaram-se importantes ingredientes da racionalização da dominação.

Entender que a ciência se tornou instrumento de legitimação do poder, que os novos governantes governam em nome da aparência da ciência político-econômica que se adquire na Science-Po (o equivalente francês da Harvard Kennedy School of Public Policy ou a London School of Economics) e nas escolas de negócios, não deve nos levar a um anticientificismo romântico e regressivo, que sempre coexiste dentro da ideologia dominante com o culto professado à ciência. Pelo contrário, esse entendimento exige a produção de condições para um novo espírito científico e político, um espírito libertador por ser livre de censuras.

Este livro resulta da convicção, adquirida ao longo de vários anos de ensino intenso para platéias acadêmicas e leigas em uma dúzia de países varridos pela revolução neoliberal, da Argentina à Alemanha, do Canadá à Grécia, de que a obra de Bourdieu contém recursos intelectuais inexplorados que permitem repensar e renovar as lutas democráticas. Para os acadêmicos, seus textos oferecem um conjunto de instrumentos conceituais para sondar os enigmas perenes e a renovação generalizada da política e das políticas nas sociedades contemporâneas; para os ativistas progressistas e cidadãos interessados em todo o globo, eles são uma fonte de idéias, pontos de vista e inspiração em suas batalhas para retomar certa medida de controle sobre seu destino coletivo numa era de desregulamentação das relações trabalhistas, hipermobilidade do capital, e Estados pusilânimes. Para tanto, este livro examina as múltiplas contribuições de Bourdieu para a teoria e prática da política democrática, esclarecendo os conceitos fundamentais de campo político, e campo de poder, seu modelo histórico da emergência do Estado burocrático moderno e suas possibilidades e limitações intrínsecas, além das análises dos problemas, práticas e instituições envolvidos na alquimia sócio-simbólica da representação. A irrefutabilidade e a flexibilidade desses instrumentos analíticos é demonstrada numa série de discussões integradas de eleições, pesquisas de opinião, dinâmica partidária, dominação de classe e construção do Estado, bem como por uma rigorosa e vigorosa exegese do engajamento político do próprio Bourdieu e seu tratamento teórico da política de reconhecimento e razão.

O primeiro capítulo fornece tópicos sobre “Pierre Bourdieu e a Política Democrática”. Ali estão esquematizadas as ligações entre suas opiniões políticas pessoais, os principais nós de sua sociologia da vida política, e as implicações dessa sociologia para o pensamento e ação cívicos progressistas. E a sugestão de que esta obra contém um modelo original de política democrática no sentido positivo e no normativo que demandam elaboração, aplicação e extensão. Os dois capítulos seguintes de Pierre Bourdieu expõem o núcleo dos componentes histórico e temático desse modelo. O primeiro, “Da casa do rei à razão de Estado”, garimpa estudos historiográficos para teorizar a transição do Estado dinástico para o burocrático e o desvio correlato do modo de reprodução do poder baseado na família para outro mediado pela escola que ancora os dois pólos antagonistas do campo do poder em diferentes sociedades: a oposição dinâmica entre sangue e mérito, hereditariedade e competência (ou, em nossos dias, títulos de propriedade e credenciais) que emergiram da longa gestação da burocracia do Estado no interior do aparelho monárquico e que se coloca no centro da divisão de trabalho de dominação, cujo avanço gerou a invenção do campo político.

O segundo capítulo de Pierre Bourdieu, “O mistério do Ministério”, trata do que constitui, na opinião dele, o enigma epicentral desse campo: a verdadeira transubstanciação pela qual um grupo passa a existir através das palavras e atos de seu “representante”, que dele recebe o poder paradoxal de fazê-lo agir como tal, mas também o de lhe dar forma – e até mesmo de traí-lo. Foi a isso que, usando uma expressão dos escolásticos – que gostavam de jogar com a semelhança entre duas palavras, baseada numa etimologia comum, o que os levou a serem geralmente mal compreendidos nos textos medievais –, Bourdieu deu o nome de “mistério do Ministério”, que se poderia traduzir neste contexto como o enigma do cargo político. A tecnologia social da delegação, pela qual o porta-voz fala oficialmente em nome do grupo e em lugar dele, passando a ser efetivamente o grupo por lhe dar encarnação pessoal, voz e vontade, desafia a lógica agregativa do voto individual, que é quase universalmente visto como a pedra de toque da democracia, mas que, segundo Bourdieu, é prejudicial aos grupos subordinados, na medida em que os força a entrar serialmente no jogo político, em isolamento mecânico, contra uma ordem política que já lhes é prejudicial. No capítulo 4, Franck Popeau e Thierry Discepolo completam os dois textos de Bourdieu, oferecendo um levantamento preciso e abrangente de suas intervenções públicas ao longo de sua carreira intelectual. Mapeiam as ligações orgânicas entre sua visão política e suas posições científicas que o levaram a praticar uma união de “Erudição e compromisso”, desde suas pesquisas iniciais na Argélia em meio a uma guerra colonial até a exposição dos efeitos corrosivos das políticas de redução do Estado na Europa no final do século.

Os dois capítulos seguintes retomam os principais instrumentos conceituais e princípios metodológicos que Bourdieu oferece para investigar a política democrática e aplicá-los aos ingredientes distintivos. Em “De que adianta votar nos séculos XVI-XVIII?”, Olivier Christian re-historiza a prática aparentemente imemorial do voto, revelando a prevalência das eleições durante a era absolutista e percebendo que a superposição e a competição de eleições colegiadas-orgânicas e individuais-majoritárias desmentem a assimilação apressada do voto ao sufrágio democrático e a crença irrefletida na invariância dos instrumentos sociais de tomada de decisão em assuntos públicos. Em “O povo fala”, Patrick Champagne estende essa discussão dos usos políticos das pesquisas de opinião e das reações a elas. Ele mostra como produtores, consumidores e comentaristas das pesquisas conquistaram um papel importante na atual divisão de trabalho político jogando com a retórica da cientificidade e da representatividade para impor uma transformação desapercebida daquilo que alegam estar simplesmente medindo: hoje, a “opinião pública” deixou de ser a opinião dos representantes eleitos, dos líderes sindicais e de associações e dos “formadores de opinião”, tais como os intelectuais, como se deu entre 1870 e 1970, mas o produto “artefatual” da união de pesquisadores ativos e cidadãos desmobilizados e artificialmente atomizados. Longe de enfatizar a voz “do povo”, a expansão do lugar das pesquisas na vida democrática é parte da racionalização generalizada da ação pública que reforça o controle exclusivo sobre as decisões do Estado pelos profissionais da política.

Em “Poder simbólico na dominação da ‘Nobreza de Estado'”, eu afirmo que a sociologia de formas simbólicas de Bourdieu abre um caminho novo para a antropologia histórico-comparativa da formação da classe dominante e de construção do Estado. Sua análise da contribuição do campo das escolas de elite para a legitimação do poder econômico e político em sociedades avançadas expõe a forma como a integração social e mental das diversas frações da classe dominante reforça o domínio de classe pelo estabelecimento de uma pax dominorum que reconheça as formas rivais de capital que possuem. Também dá um exemplo do esforço de Bourdieu para dissolver o dualismo de estrutura e ação e criar uma concepção de poder como efeito das homologias de estruturas sociais e mentais em campos que se cruzam que diverge da de Foucault na medida em que não pressupõe a mediação do “discurso” e reconhece que a energia social constitutiva da espécie de capital não se “dispersa” pelo corpo social, mas se acumula no campo do poder (e não no Estado em si). No capítulo 8, Gil Eyal leva o par conceitual de campo do poder e campo político à Europa Oriental. Ele aplica o modelo dinâmico de Bourdieu das relações entre espaço social e lutas políticas para explicar como as estratégias eleitorais e manobras partidárias resultaram na “Criação e ruptura do campo político na Tchecoslováquia” depois de o colapso do sistema soviético ter desencadeado uma polarização dinâmica que levou finalmente à divisão do país nas repúblicas tcheca e eslovaca. Dada a sua relativa autonomia, o campo político tem a capacidade prismática de transpor, inverter, e em alguns casos subverter as divisões sociais no meio do eleitorado, levando a conseqüências imprevistas que comprovam o que Bourdieu chama de “elasticidade simbólica” do mundo social.

O livro termina com a passagem do nível nacional para o global a fim de sondar as manifestações e mecanismos de uma nova forma de colonização simbólica de que os acadêmicos são a um só tempo perpetradores e vítimas. “As astúcias da razão imperialista” coloca a questão das condições intelectuais e sociais para um autêntico internacionalismo social e científico através da análise da disseminação mundial da “novilíngua” neoliberal forjada pela universalização descontrolada de conceitos e preocupações populares da sociedade e da universidade estadunidenses. Os termos, temas e tropos dessa língua franca planetária emergente – “multiculturalismo”, “globalização”, “fragmentação”, “raça”, “underclass“, “minoria”, “identidade”, etc – tendem a projetar e impor a todas as sociedades as preocupações e pontos de vista da intelligentsia estadunidense, transfigurados em instrumentos de análise e padrões de política ajustados para naturalizar a experiência histórica de uma sociedade peculiar, tacitamente instituída em modelo para toda a humanidade. Esse capítulo sugere que a lógica da circulação internacional de idéias, as transformações internas do campo acadêmico e sua crescente submissão a critérios de marketing, as estratégias das fundações e editores, bem como a dos colaboradores locais na “importação-exportação” conceitual global convergem para favorecer uma forma particularmente perniciosa de imperialismo cultural que amputa nossa capacidade de distinguir limitações e possibilidades da política contemporânea.

Parece adequado concluir com um texto que trata dos perigos do poder simbólico no mundo acadêmico que gerou viva controvérsia e discussão em vários países, já que o objetivo deste volume é exatamente o de estimular seus leitores a conhecer e avaliar as contribuições múltiplas de Bourdieu para a teoria e prática da política democrática, de que um debate intelectual aberto é componente essencial. É esperança coletiva dos autores que contribuíram para este livro (que está sendo publicado quase simultaneamente em meia dúzia de idiomas) que ele possa no mínimo ilustrar e propagar a advertência de Bourdieu de que “vale a pena lutar pelo reconhecimento do direito universal de falar, e de falar para assegurar a volta dos socialmente reprimidos”.

 

6 Comments

  1. MUITO BOM, estou quase terminando o curso de ciências sociais e co certeza vou usar Bourdieu, para a manografia. Estou fazendo um trabalho sobre a campanha política, o quanto os Políticos investem para alcançar a liderança e se eleger. e claro o pensamento popular sobre o assunto se vc tiver mais alguma dica agradeço.

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