O amor está para o samba assim como o espinho para a flor

Por Thiago Rosenberg

http://www.itaucultural.org.br/index.cfm?cd_pagina=2720&cd_materia=1221

Desiludido, o homem se dá conta de que ela, a amada, nunca fora realmente sua. Ele diz, inicialmente, não sentir dor quando ouve falar da mulher e dos dias que dividiram juntos. Mas a solidão começa a pesar. O sujeito percebe que não pode viver sem ela e, com o peito vazio, se entrega à saudade, às noites insones, ao álcool. A bebedeira, entretanto, não cura sua tristeza. Ele chega a ponto de se queixar às rosas do jardim, mas elas não falam e, por isso, tampouco o ajudam. Resta apenas o violão: é com as cordas de aço do instrumento que ele vai cantar, e tratar, a alegria perdida.

Cartola (1976), segundo trabalho solo do sambista carioca, pode ser ouvido tanto como um dos mais importantes discos da música brasileira quanto como uma história de amor − muito melhor contada, diga-se de passagem, do que no parágrafo anterior. De “Minha” e “Peito Vazio” a “As Rosas Não Falam” e “Cordas de Aço”, as canções do álbum dão um trato extremamente sofisticado às velhas questões do coração; e, reunidas como na “sinopse” acima, que obedece a ordem das faixas do disco, mostram como o amor − ou a falta dele − pode “mover” um sambista: findo o relacionamento, o artista lança mão da música para externar sua angústia e, de alguma maneira, manter vivo o que já morreu − fazendo o amor, como dizem Elcio Soares e Nelson Cavaquinho em “Juízo Final”, ser “eterno novamente”.

“Você só dança com ele E diz que é sem compromisso É bom acabar com isso Não sou nenhum Pai-João Quem trouxe você fui eu Não faça papel de louca Pra não haver bate-boca dentro do salão” “Sem Compromisso” (Geraldo Pereira e Nelson Trigueiro)

O que é específico do samba quando o assunto é amor? De acordo com o jornalista Bruno Hoffmann, que assina o blog Eu Quero um Samba (euqueroumsamba.blogspot.com), essa especificidade diz respeito à maneira pela qual a questão é abordada. “O samba trata o amor como algo real, tangível, do dia a dia”, afirma. As composições de Geraldo Pereira, em sua opinião, talvez sejam as mais representativas desse amor cotidiano. Há cenas de ciúme no salão (“Sem Compromisso”), de malandragem (“Onde Está a Florisbela?”) e de certo amor que se confunde com interesses financeiros (“Bolinha de Papel”, “Escurinha”).

“Praça Clóvis”, de Paulo Vanzolini, é outro exemplo. O desabafo do narrador tem como ponto de partida um assalto ocorrido na praça que dá nome à canção. Ele conta que sua carteira foi roubada. Nela, havia uns poucos trocados e um retrato da moça que o abandonou, do qual ele não conseguia se desfazer. O roubo, então, foi uma ótima surpresa: “Na Praça Clóvis/Minha carteira foi batida/Tinha vinte e cinco cruzeiros/E o teu retrato/Vinte e cinco/ Eu, francamente, achei barato/Pra me livrarem/Do meu atraso de vida”.

O músico paulista Douglas Germano destaca ainda a irreverência presente em muitas das composições. “O samba sempre foi um suporte maravilhoso para contar o humor do amor”, comenta. “O nosso amor é tão bonito”, canta Nelson Sargento em “Falso Amor Sincero”, “Ela finge que me ama/E eu finjo que acredito”. Mesmo assim, não falta tristeza no samba. E, nesse sentido, a cantora e compositora carioca Teresa Cristina fala sobre o papel do ritmo e da estrutura melódica do gênero: “A batucada disfarça a melancolia das letras − e impede que o conjunto soe piegas, meloso demais”, diz. “É impressionante como, muitas vezes, as pessoas dançam felizes ao som de canções extremamente tristes.” Receita de sambista Como tratar uma desilusão? Há quem prefira se isolar e chorar pelo amor que acabou, há quem busque outros braços e abraços. Cada um procura, à sua maneira, a sua cura − mas conselhos são sempre bem-vindos. As cantoras cariocas Ana Costa e Teresa Cristina têm opiniões semelhantes: colocar para fora! “É como aquele ditado antigo: ‘quem canta seus males espanta’ “, aconselha Ana, que vê a roda de samba como um grande divã. Para ajudar, Teresa indica canções que retratam “voltas por cima”, como “Tudo É Ilusão”, de Eden Silva e Tufy Lauar, “Vai, Mas Vai Mesmo”, de Ataulfo Alves, e “Tendência”, de Dona Ivone Lara. O paulista Douglas Germano diz não ter uma receita propriamente dita, mas indica, como um bom placebo, o choro “Coração Imprudente”, de Paulinho da Viola. E Rodrigo Campos, também de São Paulo, sugere misturar ao sofrimento doses de orgulho (como em “Pecadora”, de Jair do Cavaquinho), autocrítica (como em “Samba do Grande Amor”, de Chico Buarque) e sensibilidade para observar e compreender o outro. “Com um pouquinho de cada”, afirma, “você pode se curar mais rápido”. João Fernando, do Casuarina, é mais prático − e otimista: “Receita de sambista? Vai pro samba! Lá você encontra um novo amor”.

“Tire o seu sorriso do caminho Que eu quero passar com a minha dor Hoje pra você eu sou espinho Espinho não machuca a flor Eu só errei quando juntei minh’alma à sua O Sol não pode viver perto da Lua” “A Flor e o Espinho” (Alcides Caminha, Guilherme de Brito e Nelson Cavaquinho)

Apresentador do programa O Samba Pede Passagem (Rádio USP FM), o radialista Moisés da Rocha lembra que “uma das mais famosas abordagens do amor no samba − e que marca sobremaneira o machismo de nossa sociedade − é a que usa a figura da mulher ingrata, aquela que é culpada pelo sofrimento do homem”.

É o caso da moça que, feliz e sorridente, não dá bola para a agonia do eu lírico de “A Flor e o Espinho”. Ou daquela outra que tanto mexe com os “Nervos de Aço” de Lupicínio Rodrigues (“Você sabe o que é ter um amor, meu senhor/Ter loucura por uma mulher/E depois encontrar esse amor, meu senhor/Ao lado de um tipo qualquer”). Ou ainda da “Pecadora” de Jair do Cavaquinho, este menos melancólico e mais revoltado do que os anteriores (“Vai, pecadora arrependida/Vai tratar da tua vida/Por favor, me deixe em paz/Tu me deste um grande desgosto/Eu não quero ver teu rosto/Palavra de rei não volta atrás”). E por aí vai…

Mas compositores como Wilson Batista, Ataulfo Alves e, claro, Chico Buarque − famoso por seus mergulhos na alma feminina − também versaram sobre as dores delas. Em “Diagnóstico”, por exemplo, Batista se coloca na pele de uma mulher que, em uma consulta médica, descobre que seu mal é a saudade: “Ele me levou ao raio X/’Boa amiga/Eu não quero lhe desgostar/Mas você tem uma saudade no peito/Só o tempo é que pode lhe curar’ “. E Alves, em “Errei, Sim”, dá voz às mulheres de malandros: “Errei, sim/Manchei o teu nome/Mas foste tu mesmo o culpado/Deixavas-me em casa/Me trocando pela orgia/Faltando sempre/Com a tua companhia”.

Exceções à parte − como Dona Ivone Lara e Dolores Duran, entre outras −, o samba sempre foi dominado pelos homens. Mas vê-se, recentemente, um número cada vez maior de compositoras − que trazem ao samba um novo ponto de vista sobre o amor e, de acordo com João Cavalcanti, membro do grupo Casuarina, do Rio de Janeiro, “fazem ruir uma parte desse universo machista”. “Hoje”, continua ele, “além das mulheres de sambista, temos os maridos de sambista!”.

Em todo caso, elas não se incomodam com o teor machista das canções. “Muitos sambas mostram a mulher quase como um capeta”, comenta Teresa Cristina, “mas, mesmo assim, essas composições são muito bonitas”.

“Nosso amor que eu não esqueço, e que teve o seu começo Numa festa de São João, Morre hoje sem foguete, sem retrato e sem bilhete, sem luar, sem violão” “Último Desejo” (Noel Rosa)

Por ser um observador do cotidiano, o sambista não precisa necessariamente passar por tudo o que coloca em suas letras. Segundo Cavalcanti, “o ‘ambiente do samba’ já oferece várias personagens e situações para o compositor”. Chico e Cartola, por exemplo, eram muito bem casados em momentos extremamente frutíferos de suas carreiras. Mas “aqueles que sofreram muito”, conta Hoffmann, “acabaram fazendo grandes letras autobiográficas − como as de Noel Rosa para Ceci, as de Geraldo Pereira para Isabel e as de Herivelto Martins para Dalva de Oliveira”.

“Não houve compositor de samba tão debochado, sarcástico e sagaz quanto Noel”, diz, “mas ele falava muito sério quando as músicas eram direcionadas a Ceci, o grande amor de sua vida. As letras não tinham espaço para brincadeiras”. “Último Desejo”, talvez a mais conhecida delas, é, nas palavras de Hoffmann, “uma comovente despedida, quase um funeral do amor” − feita, inclusive, pouco antes da morte do sambista, aos 26 anos. “É, para mim, o melhor samba sobre amor”, continua o jornalista. “Revela a dor de quem ama, a saudade, a angústia, uma leve ironia e aquela derradeira sensação de ‘acabou para sempre’.”

Além de servir como boas companheiras − tanto na alegria quanto na tristeza −, o que canções como essas podem nos ensinar sobre o amor? “Muita coisa”, responde a cantora paulista Fabiana Cozza, “sobretudo que há sempre uma chance, outro samba que amanhece todos os dias”. Hoffmann completa: “Elas nos ensinam que continuar amando é importante, mesmo que as coisas quase sempre deem errado; que é o amor que dá movimento à vida − além de dar samba, claro”.

1 Comment

  1. Lindo texto. Fiquei impressionado com o seu grau de conhecimento sobre o assunto. Me parece ser um apaixonado pelo tema. Seu texto é esclarecedor, jornalístico e com uma sutileza poética. Me chamo Elder Ferreira, sou jornalista e moro em Brasília. Sou dono da fan page Amor ao Samba. Gostaria de entrar em contato com você para conversarmos sobre, samba, jornalismo, blog, parcerias e etc. Meu tel é (61) 8587-8404. Abraços.

Leave a comment