Solidariedade e Luta no Capitalismo:uma discussão sobre Classes Sociais – Fernando Kleiman

Muitas são as correntes na sociologia que se propõe a tentar generalizar explicações do funcionamento do conjunto das relações em nossa sociedade, particularmente ocidental e urbana. Dentro de diversos conceitos utilizados, o de classes sociais é um dos principais. Acontece que tanto sua definição teórica como sua aplicação concreta não são consensuais e variam de acordo com as escolas sociológicas às quais se filiam. A partir de Stavenhagen (STAVENNHAGEN, 2002: 281) podemos afirmar que ao menos na origem do conceito pode existir uma fonte comum: a teoria marxista. Foi a partir dos escritos de juventude e posteriormente no próprio Capital (no último e inacabado capitulo do também inacabado livro três) que Karl Marx iniciou uma rica discussão em torno do conceito hoje tão propalado em bancas da academia e mesmo no senso comum.

Para podermos, primeiramente, entender o conceito de classe em Marx é preciso entender um pouco do próprio esquema da teoria marxista. Toda sociedade não passa de uma organização do conjunto da população em torno de sua própria manutenção. Para tanto, os homens e mulheres dividem-se em atividades dentro da sociedade de acordo com os meios para produzir a vida que estiverem disponíveis. Estamos falando aqui em instrumentos de trabalho, tecnologias, maquinas e mesmo das matérias primas conhecidas com as quais se trabalha. Os homens e mulheres estabelecem, assim, relações entre si e relações com essas matérias e meios de forma a produzir a vida. Essas relações, ao olharmos nossa história, irão variar e, portanto, não serão nunca relações naturais e permanentes, mas sempre representativas apenas de um momento dessa mesma história[1]. O fundamental de todo esse raciocínio, para os fins de nossos propósitos aqui é que, por um lado, o conjunto da sociedade pode ser visto como um todo completo; de outro, a história, vista como movimento, aponta para possibilidades de mudança, sempre, e, portanto, as formações sociais que se apresentam podem sempre se tornar diferente no momento seguinte.

É nesse contexto, dentro dessa teoria, que surgirá o conceito de classe social. Mais que mera classificação, a noção de classe assumirá um papel de explicar a coerência do todo social. Uma classe social não existe sem outra, e o processo de desenvolvimento histórico de nossa sociedade conduz para a luta pela superação da sociedade de classes, em particular, o capitalismo. Apesar de serem citadas, ao longo dos escritos de Marx, múltiplas classificações sociais, como “aristocracia financeira” e “pequena burguesia”, as duas classes fundamentais (e concretas) do capitalismo são a burguesia e o proletariado (ou classe trabalhadora). A primeira é expressão dos possuidores do capital, meios de produção, daqueles que buscam coloca-lo em circulação e funcionamento para gerar mais capital; já a classe trabalhadora é a expressão dos que não possuem capital e que para viver precisam vender a única mercadoria que possuem, sua própria força de trabalho. Ambas as classes são dependentes uma da outra: sem os trabalhadores o capital não se reproduz, e sem o capital o trabalhador não sobrevive. Por ser mais imediata a necessidade do trabalhador de capital, parece que ele é mais dependente da burguesia que seu oposto. É nesse momento do desenvolvimento da teoria que surge uma das polemicas mais comentadas. Para Marx o conceito de classe trabalhadora é um dado da realidade apesar da falta de consciência de seus componentes (o trabalhador não vê que o capital precisa dele). Temos uma classe em si, que apenas é sem o saber, sem apropriar-se desse significado. Pelas lutas operarias, esses tornar-se-iam conscientes dessa condição o que lhes proveria a possibilidade de enfrentar os donos do capital, que assim ficariam à mercê da classe trabalhadora. Essa, dessa forma, tornar-se-ia uma classe para si, consciente de si, capaz de utilizar sua consciência em favor de seus interesses, superar sua condição de dependência e livrar a humanidade do próprio capital.

Como se constata na realidade, mais de um século se passou e, apesar das inúmeras tentativas, o capital segue seu curso e seu reino. Dessa constatação, críticos da teoria marxista têm alegado sua incapacidade explicativa quando o previsto não ocorreu. Apesar de possuir muitos momentos de futurologia, a obra de Marx segue sendo instrumento de analise e sua raiz fundamental segue inabalada: um conjunto cada vez mais amplo de pessoas segue sem capital, na dependência de vender sua força de trabalho para aqueles que o possuem. Vendo o capital como Marx propôs, como uma relação social opaca, este segue seu curso, e seu funcionamento segue de forma ampla e irrestrita. Ocorreu que com a concentração desse, e o desenvolvimento tecnológico dos meios de produção, uma porção maior de força de trabalho tem sido, cada vez mais, dispensada pela reprodução do capital. E a promessa liberal de que o mercado equilibraria os interesses sociais, a utopia conservadora, realizou-se menos ainda.

Ao invés de aprofundar o debate em torno dos prognósticos, voltemos às classes sociais. Ambas as classes são dependentes e só existem em função da existência da outra. Tanto no capitalismo de Marx, de fins do século XIX, como para nosso vigoroso capitalismo atual, essas identidades dentro da reprodução do capital parecem possíveis de serem captadas. E esse era o ponto até onde queríamos chegar com a teoria marxista: a identidade de classe identifica o lócus que cada um ocupa na reprodução do capital não enquanto individuo apenas, mas como parte do conjunto, como parte do todo que é próprio capitalismo.

Passados anos de complexificação das formas de reprodução do capital a pergunta que fica é a da relevância desse debate na nossa pos-moderinidade. O Capitalismo está agora colocado como uma realidade e seus efeitos e mazelas são conhecidos amplamente. Dizer que fulano é explorado ou que cicrano é um explorador já não choca e nem ajuda muito no debate sobre nossas organizações sociais. O elo que parece perdido é a prova teórico e concreta das possibilidades históricas de mudança radical de nossa forma de produzir e reproduzir o nosso bem viver. E mais que isso, a discussão do papel que as identidades de classe e sua identificação tem nesse processo.

Largar a discussão de classe para estatísticas classificatórias das faixas de renda dos cidadãos e cidadãs é o primeiro passo para tornar a teoria sociológica um mero hodômetro do funcionamento do sistema capitalista. Ver se está funcionando bem ou mal. Mais que isso, o estudo sociológico pode servir como meio de analise dos caminhos e possibilidades históricas que se apresentam à nossa coletividade. Para podermos optar por outros caminhos, primeiro é preciso torna-los conscientes, por mais que estes sejam, na maioria das vezes, construídos sem consciência. E se a teoria marxista, conforme apresentada, tem alguma validade explicativa, nosso primeiro passo é retomar com profundidade a discussão de classe.

Mesmo com grande validade, a teoria marxista apresenta algumas limitações as quais gostaríamos de discutir. Talvez essa limitação tenha sempre existido, inclusive porque para Marx ela nem tenha sido uma limitação quando sua intenção, mais do que fazer ciência, sempre foi a de transformar o mundo. Ela se constitui no fato de ocorrer uma clara lógica determinista na relação individuo sociedade que se apresenta como passível de ruptura apenas em seus extremos. De um lado somos todos coadjuvantes da circulação de capital e precisamos tomar consciência disso para poder encerrar esse mise en cene; de outro, tomada a consciência, tornaremo-nos todos parte de um movimento de boiada que nos levará a fazer a única possível revolução. Em ambos momentos, estamos presos a um comportamento de massa, primeiro sem consciência e depois com (por mais molejo dialético que tenhamos na interpretação da teoria). Por isso, para aqueles que acreditam na forte influencia da situação social mais geral no comportamento do individuo, mas ainda acredita em uma certa autonomia deste em seu cotidiano, que inclusive lhe coloca em condição de escolha, é preciso realizar um complemento a analise.

A conseqüência lógica desse desenvolvimento teórico é a necessidade de rever os próprios conceitos de classe. Em algum sentido, por um lado a estrutura da reprodução do capital e os papeis sociais cumpridos nessa relação permanecem praticamente inalterados: alguns querendo reproduzir seu capital enquanto outros precisam vender sua força de trabalho; mas a situação dos sujeitos nesse contexto precisa de alguma diferenciação. E é exatamente esse movimento de diferenciação que podemos observar na proposta metodológica desenvolvida por Pierre Bourdieu em sua teoria da ação.  Para tanto, Bourdieu irá definir dois conceitos importantes e complementares a analise previamente descrita. Em primeiro lugar, temos o conceito de espaço social como espaço de diferentes tipos de relações onde os indivíduos e grupos ocupam uns em relação aos outros por diferentes critérios. Um dos critérios será sua posição na reprodução do capital econômico, mas que estará associada a posição em relação ao acesso a bens culturais e influencias políticas (capital cultural e capital político) e que assim também terão um papel na compreensão de seu comportamento. Além de vender força de trabalho, indivíduos ou subgrupos podem ter diferentes formações escolares e culturais que os levarão a comportar-se, dentro da mesma posição em relação ao capital econômico, de maneira diferente. O mesmo vale para os que possuem o capital, que também terão um conjunto maior de elementos a serem analisados quando do estudo de seu comportamento e possibilidades do mesmo.

O outro conceito será o de habitus que é definido como “principio gerador e unificador que retraduz as caracterisitcas intrínsecas e relacionais de uma posição em um estilo de vida univoco, isto é, em um conjunto de escolhas de pessoas, de bens, de praticas” (BOURDIEU, 2003: 21). Em palavras mais simples, o habitus é a materialização em comportamento e possibilidades que cada individuo incorpora e reproduz dentro de seu espaço social.

Da definição desses dois conceitos decorre um terceiro que será o de campo social como o espaço onde se estabelece a dinâmica de luta entre os indivíduos e grupos a partir de seus respectivos espaços sociais e habitus. Mais que uma mera aproximação da teoria marxista para cima do individuo, o trajeto proposto por Bourdieu nos permite compreender elementos de reprodução e possibilidades de rupturas dos indivíduos e grupos dentro do capitalismo como um todo. E por mais que, em diversos momentos, o autor busque diferenciar-se de Marx, é dado como possível que na existência de capitais específicos para cada um dos campos em discussão, o campo econômico “tenda a impor sua estrutura sobre os demais” (BOURDIEU, 1998: 135). Assim, “pode-se descrever campo social como um espaço multidimensional de posições tal que qualquer posição atual pode ser definida em função de um sistema multidimensional de coordenadas cujos valores correspondem aos valores das diferentes variáveis pertinentes: os agentes distribuem-se assim nele, na primeira dimensão, segundo o volume global de capital de possuem [capital somado de todos os campos] e, na segunda dimensão, segundo a composição do seu capital – quer dizer, segundo o peso relativo das diferentes espécies no conjunto das suas posses” (Idem, p. 135). Disso temos que a classe social, mais que mera posição de indivíduos em relação ao capital econômico, será o agrupamento de conjuntos de indivíduos que estarão em proximidade relativa aos diversos campos definidos, e que na teoria marxista apareciam como limitados ao campo econômico. A importância dessa definição mais ampla é que, por ela, não apenas podemos nos aproximar com maior precisão das realidades sociais vividas (poucos são os que se dizem ‘pertencentes à classe operária no sentido latu marxista, menos ainda os burgueses que sempre justificam a complexidade da estrutura de posse do capital como forma de desviar a atenção de seu papel na reprodução do mesmo), como também podemos compreender de forma mais clara as formas pelas quais o próprio sistema se reproduz sem a clara consciência dos indivíduos. Talvez não fosse exagero dizer que Marx inicia uma jornada para possibilitar o entendimento da manutenção de uma sociedade injusta, e Bourdieu detalha os canais pelos quais essa reprodução se dá e o porquê das revoluções ainda não terem realizado as previsões do materialismo histórico.

Aprofundado um pouco as noções dos campos colocados como elementos de complexificação da leitura do Capital, ainda nos resta uma ultima contribuição que pode ampliar ainda mais a compreensão do sistema. As principais criticas à teoria econômica stritu sensu (aos neoclássicos e econometristas) se baseiam na questão da unidirecionalidade das ações dos indivíduos, definidos ali como racionais. Por mais complexo que seja a proposta Bourdiana, somada ao sistema marxista, ainda assim o individuo segue na mesma unidirecionalidade: agir em prol daquilo que busca receber. Do trabalhador revolucionário que busca um mundo melhor para si e para sua classe, ao político ou intelectual bourdiano que tenta valorizar seu capital nos diversos campos onde este circula, todos estão pautados pela melhor satisfação de seus interesses. O individuo ainda é auto-interessado, num sentido amplo, egoísta[2]. A pergunta que fica é porque temos sempre que acreditar na impossibilidade que o bem para si e para o outro seja uma finalidade que não leve a nenhuma valorização extra-pessoal. Parece que somos incapazes de pensar que sentimentos bons, da ação de fazer o bem, a ação humana em si, possa trazer satisfações imediatas que justifiquem sua ocorrência nelas mesmas.

É aqui que os estudos de Marcel Mauss podem nos trazer interessantes referencias para seguir nessa reflexão em curso. O conceito de dádiva é desenvolvido na obra de Mauss como uma tríade de obrigações onde se dá, se recebe e se retribui, em um sistema amplo e não imediato, de permanentes trocas que estão sempre em curso em qualquer grupo social. Não é uma tríade consciente, e nem é para ser considerada como uma relação de trocas racionais, por mais que seja um sistema de obrigações. O que se coloca é que a grande maioria das teorias sociais e políticas desenvolvidas em nossa sociedade estão pautadas pela visão daquele que a escreve: provavelmente alguém que busca algo com seu trabalho, seja reconhecimento, dinheiro ou poder. Esse fato pode limitar essas pessoas a perceber que existem outras esferas em curso, conjuntamente com seus legítimos interesses, e que todos estamos incluídos, de alguma forma, nesse complexo sistema de trocas.

Assim, se Bourdieu tenta quantificar as “trocas simbólicas”, talvez o esforço fosse por abrir um espaço onde nenhuma das trocas, seja em qual campo estiver, devam ser quantificadas, ou pensada na unilateralidade da intenção de seu agente por receber. Deve-se introduzir o sentido da dar e do retribuir como possibilidade real de compreensão do mundo, buscando entender, conjuntamente aos demais processos, o seu significado e conseqüências, para quem quer entender nosso sistema social.

Dessa forma, como um resumo daquilo que pretendemos desenvolver até aqui, esperamos que tenha ficado clara a afirmação de que sim, acreditamos viver organizados na base material descrita por Marx, onde nos dividimos em tarefas às quais possuem relações diretas com a reprodução do capital em sentido amplo. Por esse motivo, acreditamos que a sociedade na qual vivemos está estruturada em cima dessas relações que são conflituosas e que nos impõe tomar posições quando da interpretação e analise da mesma. Para ficar claro nossa preocupação em negar um viés de neutralidade (im)possível, cito abaixo um trecho de um comentário de Slavoj Zizek sobre Levi-Strauss que auxilia em nossa compreenção: “Uma referencia à exemplar analise de Lévi-Strauss, de sua obra Structural Anthropolgy (Antropologia Estrutural), da disposição espacial das construções dos Winnebago, uma das tribos dos Grandes Lagos, pode ser útil aqui. A tribo é dividida em dois subgrupos (moieties): ‘aqueles que vêm de cima’ e ‘aqueles que vêm de baixo’; quando pedimos a um individuo que desenhe num pedaço de papel, ou na areia, a planta de sua aldeia (a disposição especial das cabanas), obtemos duas respostas bem diferentes, dependendo de qual subgrupo ele faz parte. Ambos vêem a aldeia como um circulo; mas para um subgrupo, dentro desse circulo há outro, de modo que seriam dois círculos concêntricos; enquanto para o outro subgrupo, o circulo é dividido em dois por uma linha claramente demarcada. Em outras palavras, um membro do primeiro grupo (chamemo-lo de ‘corporativista conservador’) enxerga a planta da aldeia com um circulo de casas mais ou menos simetricamente dispostas em torno de um templo central, enquanto um membro do segundo subgrupo (‘antagonista revolucionário’) vê a mesma aldeia como dois aglomerados distintos de casas separadas por uma fronteira visível…(…) As duas percepções da planta são simplesmente dois esforços mutuamente exclusivos de lidar com esse antagonismo traumático, de curar sua ferida com a imposição de uma estrutura simbólica equilibrada. Seria necessário acrescentar que as coisas são exatamente as mesmas em relação a diferença sexual, e que ‘masculino’ e ‘feminino’ são como duas configurações de casas na aldeia de Lévi-Strauss? E para eliminarmos a ilusão de que o nosso universo ‘desenvolvido’ não é dominado pela mesma lógica, basta lembrarmos da divisão de nosso espaço político entre esquerda e direita: um esquerdista e um direitista se comportam exatamente como membros de subgrupos opostos da aldeia de Lévi-Strauss. Eles não só ocupam lugares diferentes dentro do espaço político, mas também percebem diferentemente a própria disposição do espaço político – o esquerdista a vê como o campo que é inerentemente dividido por um centro fundamental; o direitista, como uma unidade orgânica de uma comunidade perturbada apenas por intrusos estrangeiros” (ZIZEK, 2003: 270)

A visão dos possuidores de dinheiro, donos do Capital, é de que nossa sociedade é um todo estável que precisa apenas de mais estabilidade para funcionar melhor e incluir mais pessoas. De outro lado, os trabalhadores e trabalhadoras, principalmente quando ficam sem trabalho e sem salário, passam a ter uma visão bastante diferente: a de que a ordem como está favorece alguns enquanto outros (eles próprios), não tendo acesso a essa ordem, são condenados à exclusão. Não queremos tomar o instrumental proposto pelos demais autores sem essa clara definição da sociedade em conflito, com uma clara definição também sobre “de que lado se samba”.

Mas as propostas da abordagem de campos de Bourdieu claramente nos auxilia a precisar melhor como que concretamente os subgrupos reagem a essas situações de conflito, e por quais caminhos é possível compreender as identidades de classe nesses conflitos de forma a tornar o conflito Política, e não apenas coloca-lo para debaixo do tapete. Por isso, reconhecemos a necessidade de ampliar o leque de conceitos, mas mantendo sempre a tensão, que Bourdieu mesmo ressalta, o campo de forças, como nosso principal objeto na mira do que precisamos melhor compreender.

Por fim, com a inclusão da tripla obrigação Maussiana do dar, receber e retirbuir, esparamos podermos visualizar outras relações que não apenas a do auto-interesse quando do estabelecimento das lutas. É preciso que a noção da dádiva não ganhe uma dimensão humanitária que negue o conflito, mas que permita que dentro do conflito ela apareça como satisfação humana que transcende o raciocínio limitado do homos economicus egoísta racional.

Por outro lado, a síntese entre o conflito da reprodução do capital marxista, com os campos e habitus de Bourdieu e a tríplice obrigação maussiana nos permite ampliar a discussão das relações pessoais para a constituição da própria política. Se tomarmos a idéia na interpretação de Godbout (1999) que, num sentido amplo, a generalização das relações de reciprocidade constituem uma outra política, o próprio capital pode ganhar um outro sentido. Organizada pelo seu sentido original de oicos nomos, organização da casa, a economia volta a ser a forma de organizar o nosso bem viver. Que a transição de modo de vida capitalista a uma relação solidária de produção não é receita para ser produzida na academia, não nos resta duvida. Mas a analise das relações de luta, em composição com essas relações mais amplas de solidariedade que compõe a própria política, servem como elementos para dizer, pelo menos, que se sua validade for comprovada, outro mundo continua sendo possível. E assim devemos retomar a validade da afirmação de Marx em A ideologia Alemã, na tese XI sobre Feuerbach, de que “os filósofos apenas interpretaram o mundo de modos diferentes; é preciso, agora, tranformá-lo” (MARX, 1965: 90).

Em Brasília, julho de 2005.

BIBLIOGRAFIA

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O Poder Simbólico Bertrand Brasil, Rio de Janeiro, 1998

Condição de Classe e Posição de Classe in Aguiar, N “Hierarquia em Classes”, Rio de Janeiro, Zahar Editores

CAILLÉ, A., Nem Holismo nem individualismo metodológicos. Marcel Mauss e o paradigma da dádiva, in Revista Brasileira de Ciências Sociais, V.13, n. 38, ANPOCS

GOUDBOUT, J.T. O espírito da dádiva, Fundação Getulio Vargas Editora, Rio de Janeiro, 1999

Introdução à dádiva, in Revista Brasileira de Ciências Sociais, V.13, n. 38, ANPOCS

MARTINS, P.H. e NUNES, B.F (orgs). A Nova Ordem Social, Paralelo 15, Brasília, 2004

MARX, K.  O Capital, Os Economistas, São Paulo, Abril, 1983

Para a crítica da Economia Política, Os Pensadores: Marx, São Paulo, Abril, 1983

A Ideologia alemã, Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1965

MAUSS, M. Ensaios de Sociologia Perspectiva, São Paulo, 2001

STAVENNHAGEN, R. Classes sociais e estratificação in FORACCHI, Marialice Mencarini e MARTINS, José de Souza “Sociologia e Sociedade: leituras de introdução à sociologia”, São Paulo, 2002

ZIZEK, S.  Matrix: ou os dois lados da perversão in IRWIN, William “Matrix – bem ao deserto do real”, Madras, São Paulo, 2003


[1] Karl Marx chega a chamar a história humana até o momento de sua obra, caractezido pelo capitalismo, como pré-história da humanidade por ainda ser dominado pela falta de consciência dos homens e mulheres de suas capacidades e desejos, por ainda ser pautado pela dominação do homem pelo homem, pela exploração.

[2] Não é a toa que Bourdieu tenta desenvolver explicações para as “ações desinteressadas” em Razões Praticas sobre a teoria da ação. Ali o autor coloca que poderia existir um campo próprio onde o desinteresse tivesse seu valor, seja na família ou em comunidade, e que o desinteresse aparente seria uma manifestação de interesse nesse outro campo, com sua forma própria de valorização.

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