Enquete sociológica: a pesquisa sociológica inserida na sociedade – Fernando Kleiman

INTRODUÇÃO

 

Neste trabalho iremos tratar da enquête sociológica enquanto método de pesquisa. Para tanto faremos uso das definições de Michel Thiollent desenvolvidas no livro “Enquête Sociológica…”(Thiollent, 1982). Nosso objetivo será, em primeiro lugar, descrever o método da enquete afim de compreender o seu procedimento para a obtenção de informações. Dessa descrição seremos conduzidos para a discussão sobre a neutralidade do discurso nas ciências sociais, temática que abordaremos de forma tangencial. Isso porque não podemos nos eximir de abordar o tema quando toda a formulação dada por Thiollent parte dessa discussão enquanto uma critica aos métodos tradicionais de pesquisa e seus conceitos. Ao mesmo tempo não poderemos aprofundar demasiado nessa discussão pois colocaríamos o próprio método que se quer discutir em um segundo plano, inclusive pelo espaço restrito que pretendemos utilizar para essa tarefa. Assim sendo, o trabalho segue.

 

 

 

DEFINIÇÃO DE ENQUETE SOCIOLOGICA

 

A enquête sociológica constitui-se em uma combinação de técnicas de pesquisa, entre elas a aplicação de questionários, entrevistas e análises documentais em geral. O inicio de seu uso data do século XIX na Europa, sendo que o seu aprimoramento se deu nos Estados Unidos da América na década de 30 do século XX. Será apenas nos anos 60 que se popularizará em diversas regiões do globo.

Entendendo técnicas como os dispositivos através dos quais se buscam informações, sabemos que são processos com limitações as quais precisam ser controladas. A principal dessas limitações refere-se exatamente à questão da influencia que aquele que realiza sua pesquisa tem sobre a mesma, ou a simplesmente a questão de que a objetividade dos procedimentos executados será sempre relativa.

Essa problemática apontada já começa a ter implicações desde o início das definições que utilizaremos então. A própria nomeação da observação como observação contém em si um princípio passível de controvérsia: propõe Thiollent que no lugar de observação utilizemos o termo questionamento. Isso porque quando pesquisando não somos nunca neutros, mas sim temos questões em choque com a realidade. Em termos mais conceituais, a oposição que se coloca é explicita em relação aos conceitos mais positivistas da sociologia, através dos quais supomos os pesquisadores imbuídos do espírito isento em suas investigações. Do contrário, entendendo-nos como participes do mundo o qual pesquisamos podemos caminhar na construção de uma sociologia não positivista, onde, segundo Thiollent, teremos “um modelo de pesquisa que consiste na investigação da realidade social por meio de um conjunto de perguntas e respostas que circulam dentro da rede comunicacional que envolve o relacionamento entre o pólo investigador e o pólo investigado” (Thiollent, 1982: 36)

Dessa forma temos a noção de que sempre o investigador encontra-se imerso no mesmo terreno que o seu objeto pesquisado, que nessa condição deixa de ser objeto e passa apenas a condição daquilo que se observa, inseridos ambos no mesmo contexto.

Afim de não perdemos o fio condutor de nossa descrição metodológica, faz-se necessário avançar no sentido de alguns conceitos chave. Em termos de observação (mesmo quando entendida como questionamento), são duas categorias nas quais essas se enquadram. Uma primeira seria nomeada como da observação ativa, ou direta, na qual se trata de um questionamento que visa obter respostas em situações de comunicação artificial, ou seja, situações cuja artificialidade se dá pela própria presença do pesquisador.

Uma segunda categoria de observação seria a da indireta, ou passiva, onde o questionamento que se faz visa captar informações que circulam nos meios de comunicação ou estão estocadas em arquivos, ou seja, não são passíveis de interação como a anterior. Chamada muitas vezes de pesquisa documental, a compreensão de sua passividade se dá em perceber que não há alterações nos comportamentos e fatos pela presença do pesquisador dado que aqueles são anteriores ao interesse e à ação do mesmo. Isso porque encontrando-se em momentos temporais diferentes, simplesmente, não se comunicam.

Chegamos até aqui à generalização dos conceitos com os quais trabalhamos dentro da enquête. Necessitamos então, sucintamente, de avançar no sentido dos métodos que podemos utilizar para a aplicação dos conceitos. Ou seja, tanto a obtenção das informações de forma direta, como de forma indireta, ambas necessitam de ações que as dêem concretude.

Em relação à segunda, a observação indireta, seriam diversos os meios pelos quais podemos obter nossas informações bem como as técnicas através das quais podemos trabalhar os resultados da pesquisa. Do fichamento dos documentos obtidos, às técnicas de minutação de fitas e documentos áudio visuais, são muitos os meios de tornar as informações adequadas ao dialogo com nossas questões.

Dificuldade maior temos na seleção do meio pelo qual queremos obter as informações de forma direta. Isso porque, nesse caso, sendo esse procedimento uma relação entre pólos (pesquisador e pesquisado), as formas poderão determinar, em muito, a informação obtida. Assim precisamos aprofundar os caminhos possíveis para a proposição dessa relação, com as conseqüências que podemos prever de antemão[1].

Em termos gerais os métodos mais comuns de obtenção direta de informações nas enquetes tratam de formas explicitas de obter do pólo investigado respostas às questões levantadas pelo pólo investigador. Isso porque existe uma relação de intencionalidade da parte deste, que busca o outro com finalidades muitas vezes não presentes naquele. Concretamente, a artificialidade mencionada inicialmente nessa forma de questionamento se dá exatamente porque a relação se estabelece, ao menos naquele momento, para a obtenção daquelas informações.

Nossa gama de possibilidades para essa ação está situada entre dois pólos de um mesmo procedimento: o questionário e a entrevista. Em um pólo temos o primeiro, o questionário, enquanto uma lista de perguntas que são uma espécie “tradução” das hipóteses da pesquisa, mas em forma interrogativa. Geralmente o questionário é um procedimento mais extensivo em sua formulação previa que leva em conta tanto o nível de informação daqueles que serão entrevistados e os efeitos que a ordem nas quais são feitas as perguntas podem ter nas respostas obtidas (direcionamento ou condicionamento de respostas). Quanto mais abrangente pretende que se faça o seu resultado, mais representativa deve ser a amostra. Para tanto entraremos no mundo das estatísticas no qual temos desenvolvidas técnicas de amostragem que permitem melhor auferir os resultados e verificar sua validade. Dependendo do caso poderemos trabalhar com diversos tipos de formação de amostra: probabilística, por quotas, aglomerados, etc.

Geralmente os questionários são aplicados por pesquisadores mas também podem ser meramente distribuídos. Caso seja abrangente o suficiente a ponto de necessitar de outros aplicadores que não o próprio pesquisador, esses aplicadores de questionário deverão ser treinados afim de evitar erros de compreensão das questões e assim inviabilizar a comparação entre as respostas obtidas.

A peça do questionário possui dentro dela muitas possibilidades. A própria composição das perguntas implica em abordagens diferentes. Quanto mais abertas forem as perguntas, maior sensibilidade será necessária por parte dos aplicadores, pois cada vez mais fogem os rumos da entrevista de suas mão. Mais uma vez, a comparabilidade das respostas poderá ser comprometida.

Nos questionários fechados podemos ter perguntas com diferentes abordagens. Perguntas fechadas com respostas simples dão menos liberdade ao pesquisado de se expressar, devendo enquadrar-se. Um caminho não tão restrito são as perguntas de escala lickert, aquelas que permitem ao entrevistado dar notas, hierarquizar suas respostas em termos de intensidade e importância. Mas quanto mais queremos do pesquisado, mais exigimos do aplicador. Pois no extremo oposto teremos as perguntas abertas, aquelas que visam captar as peculiaridades de cada resposta como única, muitas vezes, mas que por isso mesmo exigem uma condução de sua obtenção mais atenta aos objetivos da própria pesquisa.

Quanto mais aberto questionário, menos diretivo torna-se o questionamento. Caminhamos assim no sentido daquilo que chamamos de entrevista, com suas nuances. Uma entrevista pode ter um roteiro ou tema-chave definido, e assim pode explicitar onde se quer chegar. Quando abrimos a entrevista para a possibilidade de uma relação menos demarcada previamente entre os dois pólos (alguma demarcação sempre existirá pela relação anteriormente mencionada), chegamos a formas mais intensivas de obtenção de informações, permitindo captar de forma mais ampla aspectos de caráter afetivo que apenas respostas oriundas de âmbitos cognitivos do entrevistado. Vale ressaltar que muitas vezes o próprio questionário pode ser formulado a partir de entrevistas, de forma que as perguntas abertas permitem um posterior foco nos aspectos e abordagens mais relevantes para o tema, e para as informações as quais se quer para o fim da pesquisa.

As próprias entrevistas possuem entre si uma diversidade de formas possíveis. Podem ser dirigidas ou padronizadas, nas quais o entrevistador tem um papel menos ativo. Podem ser semi-estruturadas ou centradas, com definição de temas e hipóteses. Podem também ser iniciadas com temas gerais, em entrevistas aprofundadas ou serem feitas com o objetivo de interpretação, como nas entrevistas clinicas. Em termos gerais estarão buscando informações sobre fatos exteriores, chamadas documentarias, opiniões dos entrevistados ou serão de caráter clinico, como mencionado.

Ainda na seleção e construção das técnicas a serem utilizadas, devemos incorporar os objetivos da pesquisa de forma a não perdermos nosso foco. Ao menos seis são os mais comuns em nossas formulações: verificação de fatos, crenças quanto aos fatos, sentimentos, padrões de ações, estudos de comportamento e razões conscientes. Em termos das informações que pretendemos obter, podemos classifica-las da seguinte forma: informações factuais, com elementos objetivos e enumeráveis; perspectivas, expressando maneiras de se representar ou descrever elementos da realidade social; opinativa, definindo preferências ou escolhas conscientes; atitudinal, manifestando disposições mais profundas e menos conscientes (geralmente utilizadas para encontrar impulsos racistas ou facistas, preconceitos em geral); ou reativo, que pode auxiliar na avaliação da validade da própria pesquisa, tentando por meio dessas informações verificar o condicionamento das respostas dadas.

Por fim, ainda na definição das próprias técnicas, temos meios de verificação da validade das respostas, o quanto elas correspondem à realidade. Dessas temos alguns tipos de erros que podem ser comprovados nos procedimentos adotados: erros de amostragem, contaminação entre perguntas, abstração de palavras que dificultam compreensão, tendências, indução por termos das perguntas, manipulação de respostas pelo uso de estereótipos e reciprocidade entre entrevistado e entrevistador por motivos de identidade (raça, cor, status, etc).

Toda a descrição feita até aqui nos serve para dar um formato imensa gama de possibilidades de técnicas que podem compor a enquête sociológica enquanto um método de pesquisa.

 

 

 

CONSEQUENCIAS DOS PROCEDIMENTOS

 

A ampla gama de possibilidades de combinações de técnicas que podem compor uma enquête sociológica tem em si um fundamento único: será sempre o estabelecimento de uma relação. Essa relação poderá ser mais ativa ou mais passiva dependendo sempre do material disponível e de oportunidades existentes para o desenvolvimento das questões. E assim damos o primeiro passo que é a inserção do pesquisador dentro do mundo do pesquisado. A pesquisa social se dá sempre em termos de relação, na qual pesquisar é também um papel.

Mas existe um segundo passo possível nesse caminho que é a inserção da pesquisa e das conseqüências de seus resultados dentro desse mesmo mundo. Assim como existe uma relação na pesquisa, o mundo no qual ela é feita é um mundo com conflitos. Os resultados e a própria execução da pesquisa podem ter efeitos de influencia nesse mundo. Essa consciência, ao ser assumida, pode nos levar a elevados patamares de discussão sobre a objetividade possível do trabalho da pesquisa sociológica.

Em primeiro lugar temos uma pista de Thiollent que nos auxilia nesse terreno arenoso. Toda pesquisa sociológica assim é definida por possuir um modelo teórico em teste com uma relevância teórica para a própria sociologia. Pesquisas e enquetes não definidas pelo objeto mas apenas por procedimentos não passam de pesquisas de opinião, aquém do mundo da sociologia. A própria pesquisa eleitoral, muito comum nos meios de comunicação de massa, não passam de uma pesquisa com uma teoria social de fundo, a de que os indivíduos são formalmente iguais, mas que enganosamente ora é vendida como pesquisa de opinião (isenta de teoria), ora como pesquisa sociológica (usada na fundamentação dos mais variados argumentos.

Nesse sentido, a consciência do tipo de pesquisa o qual discutimos dirige nossos argumentos. Mais fácil seria discutir a pesquisa de opinião ou a eleitoral que muitas vezes são previamente determinadas por quem as encomenda. Logo, na pesquisa sociológica a questão, mais delimitada, é mais delicada.

Karl Marx, em 1880, aplicou com operários uma enquête sobre a condição de trabalho daqueles trabalhadores. Acima de ser um levantamento de dados, o próprio questionário, a ordem e conteúdo das perguntas, nos esclarece quão forte pode ser a influencia da aplicação do mesmo em quem é pesquisado. Uma pergunta que busca localizar quem é o patrão e qual o estilo de vida dele pode levar operários a pensar sobre uma relação dele com aquele patrão, previamente não refletida. Assim voltamos a questão inicial: não apenas os resultados, que possuem uma influencia obvia, mas o próprio procedimento de pesquisa, num processo quase terapêutico, pode influenciar o comportamento de quem é pesquisado. Logo chegamos a questão central: se toda pesquisa influencia aquele que é pesquisado, tendo  o pesquisador consciência disto, qual deverá ser sua postura? Ignorar esse fato e fingir sua isenção ou utilizar-se de sua condição para produzir efeitos desejados?

Dentro da academia, esse debate dura desde a fundação da própria sociologia e a discussão dos meios pelos quais ela se pode afirmar como uma ciência. Como não pretendíamos aprofundar essa discussão nesse trabalho, ficando a indicação de que essa é uma questão fundamental para aquele que se propõe a navegar no mar tortuoso da enquête sociológica. Acima de tudo, denunciamos que as tentativas de ignorar sua existência apenas podem levar a irresponsabilidade de não assumir as conseqüências de seus procedimentos. Com consciência, ao menos, torna-se possível ponderar esses rumos e colocar para dentro da própria pesquisa os seus próprios resultados, não apenas teóricos, mas concretos em termos de influencia em seu meio. Assim sendo, a proposta de Michel Thiollent, da construção de uma sociologia não positivista, nada mais é que a defesa de que a sociologia encare de frente o seu papel na sociedade na qual, mesmo contra vontade de muitos, ela está inserida e exerce influencia.

 

 

 

BIBLIOGRAFIA

 

THIOLLENT, Michel. Crítica metodológica, investigação social e enquete operária. São Paulo: Polis, 1982.

 


[1] Isso porque, sendo a pesquisa concebida como relação, apenas parte de seus desdobramentos e dificuldades são previsíveis. Para essas temos procedimentos de controle que nos permitem minimizar suas conseqüências para o resultado da pesquisa.

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