A Economia Solidária é uma alternativa concreta – Fernando Kleiman

O desenvolvimento da Economia Solidária

 

            Estamos passando por um momento histórico particular e único no qual está se dando, mundialmente, o desenvolvimento de economias alternativas ao sistema capitalista, que funcionam dentro dele mas o contestam em sua base fundamental. Essa base é a concentração de capitais através da exploração dos trabalhadores, refletido no aumento das desigualdades nas distribuições de renda e riqueza mundiais. Entre muitas das alternativas em desenvolvimento está a chamada Economia Solidária.

A Economia Solidária é o sistema de produção, distribuição, consumo e crédito que está sendo construído com bases na igualdade e na democracia entre os participantes, e que tem como resultado prático a ação solidária interpessoal. Estando em construção é difícil prever o seu resultado, que seria hoje nada mais do que uma especulação do futuro. O grupo, com o qual tenho vivido na Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares da Universidade de São Paulo, fez-me acreditar nessa proposta e ter esperança que estamos construindo o novo. Acredito que toda verdadeira criação envolve quebras e que toda quebra envolve dificuldades e angústias. Para poder superar e suportar estas é que nossa esperança é fundamental. Acho que sem esperança a ação revolucionária é impraticável. Sendo assim fica que considero claro ser nossa ação revolucionária, e é esse o motivo de sua realização.

A Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares é um projeto de alunos, professores e funcionários da Universidade que juntos realizam trabalhos de formação e acompanhamento de grupos com interesse em formar sua própria cooperativa. Foi constituída na USP em 1997 a partir do exemplo da Incubadora da UFRJ, que existe desde 1994.

            A cooperativa, apesar de ser apenas uma das dimensões através da qual se forma um cooperado, é a base produtiva da Economia Solidária.

 

A Produção, na Economia Solidária

A produção deve ser realizada por cooperativas de trabalho. A cooperativa é um empreendimento solidário que tem como finalidade buscar uma melhor qualidade de vida para os cooperados integrantes. Nestas cada trabalhador é um cooperado e possuidor  de uma, e somente uma, cota parte de seu capital social. Assim todos os sócios, enquanto cooperados, têm os mesmo direitos e deveres, registrados no Estatuto e Regimento Interno da Cooperativa, e nenhum pode se impor ao outro, e nem fazer prevalecer seu interesse, por uma maior posse da empresa. A estrutura organizacional da cooperativa possui diferentes cargos diretivos para a administração do dia-a-dia.


A ASSEMBLÉIA é a instância máxima decisória na Cooperativa. Nela são tomadas as decisões de caráter estrutural para a cooperativa. Delibera-se através dela as políticas que serão postas em prática pela cooperativa. Além disso durante a sua realização são discutidos pontos menos consensuais ao grupo como a expulsão de um sócio-cooperado, ou decisões sobre financiamentos e aquisições. Nela cada Cooperado, igualmente aos seus companheiros, possui apenas um voto, inclusive os que ocupam cargos diretivos.


Os cargos diretivos são funções criadas para realizar a gestão da Cooperativa. São ocupados pelos cooperados eleitos para mandatos revogáveis e por tempo determinado. Devem seguir sempre as deliberações das Assembléias, e prestar contas sempre que cogitados. São fiscalizados periodicamente pelo Conselho Fiscal, também eleito nos mesmos termos.

A Democracia Interna a democracia nas decisões tomadas é garantida pelo igual direito de voto entre todos os cooperados. Assim, todos os que trabalham têm o direito de tomar decisões sobre o seu próprio trabalho, o que dá a possibilidade, ao cooperado, de sentir-se como agente de sua vida, e não dependente da ordem e interesse de outros apenas. Esta situação é oposta àquela da empresa patronal na qual apenas o patrão toma as principais decisões a respeito do trabalho de seus funcionários, que o obedecem.

O funcionamento da cooperativa garante a possibilidade de participação dos cooperados no exercício de voz e voto nas Assembléias. Mesmo assim só a existência da possibilidade não garante a efetiva participação dos cooperados, que pode ser um processo de contínuo aprendizado junto a construção de novos valores. Por mais que no discurso prevaleça a idéia de que somos apenas pessoas competitivas, nosso trabalho com a comunidade tem mostrado que não são poucas as experiências de cooperação vividas (e desvalorizadas enquanto tais) e que devem ser buscadas na vida de cada uma das pessoas que se propõe a trabalhar conosco. Essa ação pode, como por vezes ocorre, transcender o ambiente de trabalho, alterando outras relações sociais do indivíduo (família, amigos, etc.). Mas, mesmo com a democracia existente na cooperativa, a igualdade entre os sócios é algo que deve ser defendido por eles nas Assembléias, ao tomarem decisões que não hierarquizem as relações entre os cooperados, buscando a menor diferenciação nos direitos adquiridos. Isso porque, por essa mesma democracia, é muito possível que as relações igualitárias e solidárias sejam negadas e reproduza-se internamente, na cooperativa a hierarquização e desigualdade tão costumeira de nossa sociedade. Essa situação é aclarada em Singer(1999b, p.130): “ A grande maioria das pessoas comuns – trabalhadoras, mães de família, técnicos, professores, etc., etc. – é condicionada a aceitar passivamente que outros, em posições de mando e responsabilidade, tomem decisões cruciais por elas. O desejo de participar, que é a forma concreta do anseio pela desalienação, normalmente não é despertado e é freqüentemente reprimido quando se manifesta. Por isso, o desejo de saber, de assumir poder e responsabilidades, seja pela escola dos filhos, pelo hospital do bairro ou pela empresa em que se trabalha, tem que ser cuidadosamente cultivado, inclusive pela educação cooperativa”.

            Podemos separa as diversas cooperativas de trabalho possíveis em pelo menos dois grupos para facilitar a compreensão: cooperativas de produção e cooperativas de serviço. As primeiras estão diretamente ligadas a criação de mercadorias para serem vendidas no mercado, e consumidas por seus possuídores. Sendo assim existe uma separação entre a feitura do produto, permeada pelas relações democráticas, e o consumo deste feito a partir da aquisição no mercado “competitivo”[1].

            Já as cooperativas de serviço possuem um problema a mais dado que a força de trabalho é que é vendida para o serviço, o que dá margem a reprodução das relações de exploração tendo o contratante na figura de patrão. Nesse sentido uma solução é a transformação do serviço em produto. Por exemplo, ao invés de se vender a mão de obra para jardinagem, vende-se um jardinagem no qual os cooperados se organizam para realizar o serviço no tempo determinado.

            Sendo de produção ou serviço é importante para a cooperativa manter-se na constante busca da democratização de suas relações internas.

 

O sistema de Distribuição, na Economia Solidária

Para além das relações internas na cooperativa é importante atentar para o relacionamento externo da cooperativa no mercado. Um dos princípios de funcionamento deste é a luta das empresas que nele trabalham pela obtenção de vantagens na relação de troca com outras empresas ou pessoas. A cooperativa não se caracteriza por ser uma entidade beneficente para com os outros que fará de tudo para que estes funcionem bem e não maximizem seus lucros. A cooperativa, como qualquer outra empresa precisa de capital, e os cooperados, como quaisquer outras pessoas precisam de dinheiro para sobreviver. Portanto no mercado a cooperativa também compete. Mas existe um diferencial no produto ou serviço oferecido pela cooperativa que é o fato de que o benefício conseguido pela empresa não será concentrado na mão de alguns que exploram outros, mas sim será um benefício a todos aqueles que na cooperativa trabalham.

Mas dentro da proposta de Economia Solidária existem articulações sendo feitas para que se forme uma rede de produção cooperativa. Nesse caso a proposta é conseguir aumentar a competitividade e a eficiência do conjunto quando cooperativas trocando com outras cooperativas possam desenvolver uma relação menos competitiva entre si, mas mais competitiva com as empresas capitalistas. Um primeiro passo nesse sentido são os clubes de troca, que proliferam no Brasil, nos quais ao invés de trocar através de moeda corrente, pelas quais os produtos seriam trocados a preços de mercado, as pessoas tem um outro equivalente comum, mais próximos às possibilidades daquele grupo. Por exemplo, caso uma cooperativa venda copos plásticos e uma outra realize serviço de Jardinagem, no mercado comum estas iriam basear-se na valorização que o mercado dá em dinheiro para seus produtos. Na articulação entre elas é possível que uma forneça até mais copos por um serviço maior que o mercado possibilitaria, através de um acordo fechado entre as duas segundo as necessidades de cada uma delas. Assim não mais se valoriza as relações monetárias, mas sim as necessidades e esforços de cada cooperado. Além destas iniciativas, assim como fazem os grandes conglomerados capitalistas, que se organizam em monopólios e monopsônios para maximizar seus lucros, as cooperativas têm buscado encontrar-se para articularem uma cadeia produtiva cooperativa[2], privilegiando a compra e contratação de cooperativas solidárias para lhes fornecerem o que necessitam.

            Outra possibilidade, para produtos, é a criação de cooperativas de distribuição. Assim como os intermediários capitalistas, a cooperativa de distribuição pode comprar e vender (no atacado, para outras lojas, ou no varejo) as mercadorias de outras cooperativas.

 

O Consumo, na Economia Solidária

A própria distribuição de renda proporcionada pelo empreendimento solidário já altera a estrutura de consumo quando mais pessoas estarão aptas a consumir. As formas de distribuição descritas também alteram a maneira como o consumo se dá, quando nos clubes de troca são outros os valores das relações estabelecidas. Mas, além dessas alterações, a criação de cooperativas de consumo também é possível. A cooperativa de consumo é uma empresa semelhante à cooperativa de trabalho na forma, só que a sua finalidade é comprar no atacado e distribuir aos sócios no varejo a um preço mais acessível. Existem já no Brasil diversas cooperativas de consumo. Estas são formadas, geralmente, por trabalhadores de grandes empresas que muitas vezes os auxiliam na formação destas. A cooperativa que consideramos na Economia Solidária como pioneira dos princípios do cooperativismo foi a Cooperativa dos Pioneiros de Rochdale, formada na Inglaterra em 1844 e era exatamente uma cooperativa de consumo.

 

O Crédito, na Economia Solidária

Uma das facilidades que os capitalistas possuem em relação às cooperativas é o seu acesso ao crédito. São muitas as dificuldades criadas aos que não possuem grandes patrimônios na obtenção desse crédito, por mais que a taxa de inadimplência destes seja menor que a dos grandes investidores. Muitas vezes têm-se até o patrimônio como garantia ao financiamento, o que funciona como uma justificativa à restrição desse acesso. Afim de solucionar esse problema são necessárias políticas governamentais que incentivem essa democratização que poderia colocar as cooperativas em pé de igualdade com empresas patronais. A criação de cooperativas de crédito, que funcionariam com a junção das poucas posses de muitos, é pouco disseminada no Brasil, dado que a legislação cooperativismo possui muitos impecílios. Outra possibilidade é, assim como a experiência de Bangladesh e também do Governo do Rio Grande do Sul, criar Bancos do Povo, nos quais são os integrantes da comunidade que gerenciam os empréstimos aos seus pares.

 

A Economia Solidária no contexto atual

 

A acumulação de capitais é crescente no mundo atual. Cada vez mais, menos empresas possuem uma maior proporção da renda e da riqueza mundial em suas mãos. Por outro lado, uma maior população mundial (absoluta e relativa), é impossibilitada de consumir, por não possuírem renda.

É interessante notar que, com o desenvolvimento tecnológico, a capacidade produtiva mundial aumenta, mas mesmo assim não é organizada de modo que mais pessoas, ou talvez até todos os homens e mulheres, possam consumir. Sabe-se que o lucro só se concretiza com o salto mortal da mercadoria que se dá quando esta é vendida no mercado. No discurso empresarial impera a idéia de que a competitividade impõe que as empresas produzam apenas mercadorias lucrativas, pois se não, a empresa é excluída do mercado. Mas a competitividade  só existe entre as empresas, sob o comando dos homens e mulheres. Ou seja, ninguém se sente responsável pelas atitudes que diz ser obrigado, então, a tomar. Ao invés de se ver como ativo, preferimos ser as vítimas desse jogo cujas regras são dadas. Bem disse nosso atual Presidente do Banco Central que a política de juros de um Governo, no caso o brasileiro, é uma questão meramente técnica, em cerimônia na qual foi sabatinado para o cargo. Assim, além das atitudes particulares nas empresas privadas, de exploração e especulação, também merece destaque a adoção desse discurso pelas entidades públicas. É com ele que o governo brasileiro faz concessões aos agentes internacionais dizendo “melhorar o país”. Mesmo com todo o potencial produtivo que o país poderia explorar, mais de 7% da população não encontra trabalho. E esse 7% da população, obviamente, também deixa de consumir. “(…) Problemas como o desemprego e o subemprego, a desnacionalização da economia e dependência de capitais externos, longe de constituírem a conseqüência irrecorrível de um processo global, resultam essencialmente de políticas adotadas no âmbito nacional, convenientemente dissimuladas pelo apelo à retórica da ‘globalização’” segundo Batista Jr (1998, p.129).

Dentro do sistema capitalista, a acumulação manterá seu curso, e será sempre defendida por aqueles que dela se beneficiam. A transformação desse sistema é necessária e muitos lutaram por isso nas décadas passadas. É preciso ter esperança e agir.

A Economia Solidária se propõe enquanto revolução social (Singer, 1998b). E para que ela possa ocorrer precisamos nós, homens e mulheres, fazer o nosso trabalho. A Utopia é aquilo que nunca se concretiza, como a satisfação do desejo, que se faz pela constante vontade de desfrutar mais. A Utopia Militante, como bem cunhou o Prof. Paul Singer, é o sonho que vivemos como realidade do que um dia será.

 

Bibliografia

 

ANTEAG, Empresa Social e Autogestão – ANTEAG  III Encontro Nacional, S.Paulo, 1998

Lorena da Silva Holzzman, Operários sem Patrões, Tese de Doutaramento- FFLCH-USP, 1990

Paul Singer, Globalização e Desemprego, S.Paulo, Ed. Contexto, 1998a

Uma Utopia Militante, Ed. Vozes, 1ª edição, 1998b

Paulo Nogueira Batista Jr., Mitos da Globalização, in Estudos Avançados, IEA, no. 32, Jan.1998.

Samuel Bowles, Herbert Gintis e Bo Gastafson, Markets & Democracy: Participation, Accountability & Efficiency ,

William Foote Whyte e Kathleen King Whyte, Making Mondragón, ILR PRESS, 4th. Edition, 1996. 1st.edition, 1988.


[1] Uso o termo entre aspas pois é bastante questionável a idéia de que o funcionamento normal do mercado é competitivo quando grande parte deste é formado por oligopólios ou oligopsônios que exercem um controle dos preços. Fato é que a relação do vendedor da mercadoria no mercado é competitiva, querendo ganhar em cima do comprador, diferentemente da relação interna da empresa que é cooperativa.

[2] Um desses espaços é o Fórum de Economia Solidária, criado no ano passado, que vêm reunindo grupos de interesse no desenvolvimento da Economia Solidária, na Câmara Municipal de São Paulo. Para maiores informações entre em contato pelo telefone:

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